Tendência é que Lula não altere relações entre civis e militares

Militarização é crescente quando valores das Forças Armadas se aproximam de valores da sociedade



31.out.2022 às 19h12

Jorge Zaverucha
Doutor em ciência política pela Universidade de Chicago e professor titular do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco

O cientista político americano Samuel Huntington, certeiramente, escreveu: "O esforço para responder à questão: ‘Quais são as caraterísticas do establishment militar de uma nova nação que facilitam o envolvimento militar na política doméstica?’ está mal direcionado porque as causas mais importantes da intervenção militar na política não são militares, mas políticas. Refletem não as características sociais e organizacionais do establishment militar, mas as estruturas políticas e institucionais da sociedade".
Desde a Constituição de 1988 ficou claro que o Brasil teria um governo pela lei em vez de um governo da lei (Estado de Direito).
Em seu nascedouro o relator da Constituinte inseriu, à socapa, dois artigos no texto constitucional. A ausência de um "ethos" democrático apontava para uma futura degradação institucional. Muita ingenuidade acreditar que o país poderia vir a ser uma democracia consolidada.

O STF encarregado de zelar pela Constituição nada fez. O mesmo parlamentar assumiu o ministério da Justiça no governo tucano. Em seguida, tornou-se ministro do STF e, posteriormente, presidente desta Corte. Finda a presidência foi nomeado, por Lula, ministro da Defesa. Todos com todos.
Afora isto, o artigo 142 que concede às Forças Armadas o poder de garantir a lei e a ordem, foi empurrado goela abaixo dos constituintes pelo general Leônidas Pires Gonçalves. Tal artigo não existe em qualquer constituição democrática. Porém, foi copiado pelas constituições pinochetista e sandinista. Pinochet e Ortega são admirados, respectivamente, por Bolsonaro e Lula. Todos com todos.
Os militares deixaram de presidir os destinos do país, contudo isto não implica afastamento das decisões governamentais, ou seja, do poder. Os militares mostram-se satisfeitos em não carregarem o ônus de ser governo, mas usufruem o bônus de ser poder.
Na antiga Europa Oriental, o controle civil sobre os militares era civil, mas não democrático. Os militares estavam submetidos aos partidos comunistas. O desafio das transições do autoritarismo comunista para a democracia foi despolitizar os militares.
As transições latino-americanas procuraram desmilitarizar a política, tentando levar os militares a se concentrar na atividade extroversa: a defesa das fronteiras do Estado. Isto não foi feito no Brasil, em especial no governo Bolsonaro.
A diferença dele para seus antecessores, ressalve-se, é de espécie e não de gênero. O fato é que Bolsonaro maximizou o poder militar em seu governo. Colocou vários militares da ativa em seu ministério e nomeou cerca de 6.000, entre os da ativa e os da reserva, no aparelho de Estado. Editou o Decreto 10.727, liberando a participação de militares no governo por tempo indeterminado.
O texto modificou o Estatuto dos Militares, ao autorizar que militares federais não tenham de passar para a reserva após dois anos em cargo antes considerado civil.
Por esse decreto, passam a ser tidos como cargos de natureza militar os exercidos no STF, nos tribunais superiores, no Ministério da Defesa e nos órgãos que integram sua estrutura regimental, na Advocacia-Geral da União, na Justiça Militar da União e no Ministério Público Militar.
A regra vale também para militares do Exército colocados à disposição da Fundação Habitacional do Exército, da Fundação Osório e da Indústria de Material Bélico do Brasil. Idem para os cargos e funções exercidos por militares da Marinha colocados à disposição do Ministério de Minas e Energia, da Caixa de Construções de Casas para o Pessoal da Marinha, da Empresa Gerencial de Projetos Navais, da Amazônia Azul Tecnologias de Defesa S.A., do Tribunal Marítimo, da Nuclebrás Equipamentos Pesados S.A. e das Indústrias Nucleares do Brasil S.A.
O decreto atinge ainda cargos exercidos por militares da Aeronáutica à disposição da Caixa de Financiamento Imobiliário da Aeronáutica. O mesmo entrou em vigor sem provocar debates no Congresso.
A militarização é crescente quando os valores das Forças Armadas se aproximam dos valores da sociedade. Consequentemente, quanto maior o grau de militarização, mais tais valores se sobrepõem. Numa prova de que o militarismo é um fenômeno amplo, regularizado e socialmente aceitável, tanto pela classe política como pela população em geral.
A julgar pelo seu comportamento quando foi presidente, não se espera que o novo Lula altere a natureza das relações civis-militares brasileira.

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