A semidemocracia brasileira

 

A semidemocracia brasileira revista



Por José Maria Nóbrega – cientista político

Passados mais de trinta anos da redemocratização, estamos longe da superação de nossos traços autoritários. Defendo a tese na qual o Brasil é uma semidemocracia, ou seja, um regime político que avançou eleitoralmente, preenchendo os requisitos schumpeterianos do “método democrático” (SCHUMPETER, J. A. Capitalismo, Socialismo e Democracia. Zahar Editores. 1984), mas o autoritarismo de algumas de nossas instituições se mantém como óbice ao avanço da democracia em sua plenitude.

Incrível que só recentemente meus colegas cientistas políticos, inclusive renomados cientistas políticos estrangeiros, passaram a afirmar, em tom de grande preocupação, que a democracia brasileira está ameaçada pelo simples fato de ter eleito um governante conservador.

Adam Przeworski e Stevie Levitsky passaram a publicar livros e artigos afirmando que Bolsonaro é uma ameaça a democracia brasileira e que a democracia é um tipo de regime político que pode ser “carcomido” por dentro quando o método democrático produz eleitos tais como Donald Trump, nos Estados Unidos, e Jair Messias Bolsonaro, no Brasil.

O problema que enxergo em suas abordagens, e o que influencia diretamente muitos de meus colegas, é adotar a perspectiva schumpeteriana para avaliar e comparar regimes políticos. Essa visão, segundo Scott Mainwaring e seus colegas de produção, é restrita demais, mesmo numa concepção minimalista da democracia, e induz a erros graves de interpretação da realidade.

Em artigo seminal, Mainwaring (MAINWARING, S.; BRINKS, D.; LIÑÁN, A. P. Classificando Regimes Políticos na América Latina, 1945-1999. Dados. 44. 2001. https://www.scielo.br/j/dados/a/y74Qn63SLFh4FGkfsvZytHg/?lang=pt) chamou tais concepções de submínimas, inclusive fazendo forte crítica ao trabalho do Przeworski (PRZEWORSKI, Adam and et alii (2000) Democracy and Development. Political Institutions and Well-Being in the World, 1950-1990. Cambridge University Press. Cambridge Studies in the Theory of Democracy), pois são definições tão estreitas que desprezam fatores institucionais muito claros de serem observados.

Até recentemente – leia-se: até as eleições de governos progressistas do PSDB, com Fernando Henrique Cardoso, e do PT, com Lula e Dilma Rousseff -, a democracia brasileira se apresentava como regime robusto e consolidado para a maioria dos “analistas” políticos, aí incluindo os colegas cientistas políticos e os renomados cientistas políticos norte-americanos supracitados. Não havia risco nenhum de retrocesso na retórica deles.

Esse é um dos riscos do subminimalismo, segundo Mainwaring. Diminuir a democracia a competição pela liderança. Democracia, mesmo numa perspectiva minimalista, precisa levar em conta a qualidade do Estado e a capacidade real da autonomia dos atores políticos eleitos.

Para tanto, mostra-se de fundamental importância definir o que é uma democracia (consolidada). Esta é um regime político no qual há eleições livres, limpas, pluripartidárias, com direito à alternância com oposição livre; com sufrágio universal; em que os direitos civis e políticos estão garantidos institucionalmente; e no qual as Forças Armadas estejam sob controle dos civis. Leonardo Morlino (MORLINO, L. Qualidades da democracia: como analisá-las? Sociedade e Cultura. V. 18. N. 2. 2015. https://www.revistas.ufg.br/fcs/article/view/42383), cientista político italiano, e Guillermo O´Donnell (O´DONNELL, G. Teoria Democrática e Política Comparada. Dados, 42. 1999. https://www.scielo.br/j/dados/a/rvQLbNfP5vTkW6F4ymxJXhq/?lang=pt), cientista político argentino, ainda acrescentam em suas definições de democracia, a independência do Judiciário e a capacidade estatal do monopólio da violência.

Partindo desse conceito mínimo, mas não submínimo, não podemos afirmar que o Brasil seja uma democracia (plena), em todo o seu trajeto pós-redemocratização o regime não se mostrou consolidado como democracia.

Desde Sarney, primeiro presidente civil pós-regime militar, até o momento, com o atual Presidente Jair M. Bolsonaro, o Brasil é classificado, segundo a definição minimalista aqui exposta, como um regime político híbrido, ora apresentando características da democracia, ora apresentando características de autoritarismo, mais próximo do conceito de semidemocracia trabalhado por mim (NÓBREGA JR., J. M. P. DA. A Semidemocracia Brasileira: autoritarismo ou democracia? Dossiê Democracia, Poderes e Segurança • Sociologias (23) • Abr 2010. https://www.scielo.br/j/soc/a/brDRC67xkCffZzPmqTCQzjG/?lang=pt).

A semidemocracia, por definição, é uma situação na qual uma democracia “imperfeita” caminha rumo a uma democracia com sólidas e responsivas instituições. Instituições essas que não estão vinculadas apenas àquelas que passam pelo crivo das eleições, mas que são fundamentais para o sucesso da democracia como regime político. Nessa situação, o regime político apresenta os critérios eleitorais da definição, mas não consolida o seu estado de direito e a capacidade de governança de atores eleitos é minorada por atores não eleitos, como as Forças Armadas.

Esclarecido o conceito, fica difícil afirmar que só agora a democracia brasileira está em crise. Na verdade, toda a nossa história recente é de constante crise devido ao fato do regime político não se enquadrar na classificação "cheia" de democracia, segundo os critérios eleitorais, liberais e estatais de sua definição.

Dito isto, afirmo que o resultado eleitoral do último pleito eleitoral brasileiro para Presidente da República foi produto de nossas instituições e não um resultado aleatório que terminou por ameaçar “sólidas e consistentes” instituições da República. Pelo contrário, foi uma resposta do eleitor médio (DOWNS, A. Uma teoria econômica da democracia. Ed. USP. 2015) a décadas de governos progressistas corruptos.

A semidemocracia brasileira, com seus insistentes traços autoritários, não está ameaçada por um “desejo” interpretativo da elite intelectual progressista de enxergar autoritarismo apenas no que lhe é conveniente. O regime político brasileiro é criador de crises e têm grandes dificuldades de superá-las, sobretudo pelo forte ativismo do Judiciário, que apresenta em muitas de suas decisões clara agressão à democracia, e falta de independência política da Corte.

Bolsonaro não atentou contra a semidemocracia brasileira ainda. Mantém-se em nosso atual quadro todas as instituições funcionando – bem ou mal – antes e depois de sua ascensão ao cargo máximo da Nação.

As eleições continuam a vigorar normalmente. O sufrágio continua universal. A tentativa de mudança na regra eleitoral por parte do Presidente se deu dentro das instituições e das regras do jogo da democracia, sendo ele vencido em seu intento de implantar o voto impresso. Os direitos civis e políticos continuam a vigorar, ao menos formalmente. Suas violações continuam dentro de nossa tradição não-liberal de resolução de conflitos. Na verdade, a violação mais enfática se dá por parte do Supremo Tribunal Federal agindo, muitas das vezes, de modo legibus solutus. E as prerrogativas militares continuam as mesmas de antes da assunção do atual mandatário do país.

Ou seja, do ponto de vista da teoria democrática contemporânea procedimentalista e minimalista, é uma falácia afirmar que o simples fato de ter um governante conservador no cargo de Presidente é fator para ameaças ao regime político democrático. Não é Bolsonaro que destrói a democracia “por dentro”, mas a falta de democracia “por dentro e por fora” que mantém o estágio semidemocrático do regime político brasileiro.

 

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