O poder e o seu abuso

 




O poder e o seu abuso

Por José Maria Nóbrega – cientista político, comentarista do Programa Sexta de Três na Rádio CBN Recife

Em ‘Microfísica do Poder’, o filósofo francês Michel Foucault detalhou minuciosamente como o poder vai além do alcance das lentes do cientista político. Este, geralmente se atenta as formalidades jurídicas e normativas constitucionais. Para Foucault, o poder está nos mínimos detalhes, nos corpos, nos gestos e atitudes, nos hábitos e nos discursos. O que vemos hoje no Brasil, é o poder muito além do monopólio estatal, deslocando-se e modelando-se em redes de poder que vai do traficante de drogas em uma comunidade, ao editor-chefe do Jornal Nacional.

O que assistimos hoje é uma série de atitudes disfarçadas de “bem comum” que estão atingindo um patamar de convulsão social. Os decretos dos governadores estão na ordem do dia, com suas ações totalmente fora dos princípios constitucionais, dando força desmedida a já desmedida força das guardas pretorianas subnacionais, as polícias militares, os militares estaduais.

Com cenas deploráveis de prisões de pessoas comuns pelo simples fato de estarem trabalhando, ou vendendo frutas, ou mesmo sem o uso de uma máscara no rosto, as forças militares estaduais, a mando do governo local, passaram a agir muito além da conta, abusando constantemente do poder que não tem.

John Rawls, professor de filosofia política de Harvard, dizia: “um exército não deve ser usado contra seu próprio povo” (O Direito dos Povos. Ed. Martins Fontes). No entanto, os governadores de estado estão usando a sua guarda pretoriana, as pms, justamente contra o povo, o povo trabalhador. Com a esquerda muda, vergonhosamente muda. Esta, que sempre foi tão crítica ao poder coercitivo estatal. Mas, só quando é de seu interesse. Ideologia, nada mais. Poder.

A reação aos desmandos já aparece nas ruas. A população está no seu limite. Ninguém, que depende do dia-a-dia do mercado, aguenta mais.

O Supremo Tribunal Federal retirou do Presidente a responsabilidade das ações de confronto à crise sanitária e jogou para os governadores e prefeitos esta prerrogativa. O resultado foi uma série de decretos inconstitucionais e antidemocráticos. Uma torrente de ações autoritárias nunca vista no Brasil recente.

O Presidente precisa reagir. O poder precisa frear o outro poder. Os governadores de estado não têm poder de decretar atos que precisam do aval presidencial. Tudo que está acontecendo é ilegal, mas está acontecendo. Até o Procon virou um órgão autoritário!

Há um ano estamos vivendo uma crise sanitária mundial sem tamanho. O Brasil vem atravessando a sua pior fase. Mas poderia ser outra realidade, já que foram jogados bilhões de reais nos governos subnacionais. Contudo, esses gestores não investiram adequadamente, não planejaram uma possível nova onda de contaminação. Qual foi a saída da incompetência e falta de empatia? Decretar o fechamento das cidades como se vivêssemos numa Nova Zelândia. Sem prestar contas do vultuoso dinheiro enviado pelo governo federal, diga-se de passagem.

Não achando pouco, jogaram as suas guardas pretorianas nas ruas para ameaçar e agredir os cidadãos de bem. Com a truculência que lhes é característica, as pms perderam a sua credibilidade, já ruim nas periferias, perante boa parte da sociedade que antes lhe apoiava em suas ações autoritárias. O autoritarismo das pms perpassaram as periferias e os despossuídos e alcançaram os trabalhadores pobres, os pequenos e microempresários, a classe média empreendedora.

De toda a forma, sabemos que há muitos bons policiais na instituição e muitos desses bons policiais estão saturados. Não aguentam mais ir às ruas para impedir o trabalhador de ganhar o seu sustento. Haja vista o que aconteceu em Salvador com a morte do Soldado Wesley. Na Bahia há um movimento forte da sua pm contra os (des)mandos de seu governador. A coisa parece que saiu do controle. Estado de anarquia.

Mais de 80% da população brasileira tem rendimento domiciliar per capita entre os ¼ e dois salários mínimos. São pessoas que precisam, todos os dias, sair de casa, pegar ônibus ou metrô, andar vários quilômetros para chegar em seu destino de trabalho. Pessoas que não têm condições de pagar plano de saúde, que gastam boa parte de sua renda pagando passagens de transporte coletivo, sempre insalubres, cheios, lotados. Não tem outra saída. Ou saem para trabalhar, ou não comem!

São décadas de descaso com o serviço público de transporte urbano. Sem falar as péssimas instalações em muitos hospitais públicos Brasil afora. Ou já se esqueceram das matérias jornalísticas mostrando as pessoas entulhadas umas por cima das outras em unidades hospitalares sem as mínimas condições de conforto, quando não de higiene? Só quem já precisou do serviço público de saúde sabe do que estou falando.

Todavia, agora, para os governos subnacionais, a questão é a “falta” de bom senso da população. A culpa da desgraça humana pela qual passamos é da população. Pasmem! O secretário de saúde de Pernambuco já disse: se não cooperarem, o Estado vai recrudescer as medidas restritivas. Ou seja, o governo não tem nada a ver com isso. Querem passar a imagem de que vem fazendo a sua parte. Quanta “cara de pau”!

Os governos jogam a conta de sua incompetência e ingerência na população, que é sempre tida como mal-educada e incivilizada. Sabemos que não é culpa dela. Claro. Mas, lembre-se do início do nosso texto e da filosofia de Foucault. Como ele dizia, o poder está no discurso. Hoje, o discurso majoritário é do “fique em casa” a todo custo, mesmo que o custo seja a propriedade privada (bens, vida e liberdade). E esse discurso tem como base a “ciência”. É só dizer esta palavra mágica.

Para John Locke, filósofo inglês fundador do liberalismo político, todo governo deve garantir a propriedade privada dos cidadãos. Ou seja, a vida, os bens e a liberdade dos indivíduos. Se o governo falha em garantir a propriedade, é legítimo desobedecê-lo. E isso está cada vez mais iminente. Muitos empresários estão desafiando os governos tiranetes. Simplesmente, estão abrindo os seus comércios e contratando advogados para processar o governo, ou se defender das multas que porventura possam lhes ser aplicadas.

O pior de tudo isso, é que o discurso majoritário do poder não pode ser contestado. Quem o contesta é chamado de “negacionista” ou “bolsonarista”, ou até mesmo de “fascista”. E se for contaminado pelo covid19, como na visão dogmática da religião, vão dizer: “olhe aí, e ele que não acreditava na ciência”. Como se fosse um castigo da divindade “ciência”. Quanta infantilidade.

Sabemos que a própria ciência também é ideológica e que carrega consigo muito de poder. Saber é poder, como dizia o filósofo francês Francis Bacon, e o saber científico tem lado. Não se iludam. Estamos vivendo uma guerra de narrativas na qual o que menos importa é o “bem comum”. Aliás, conceito por demais confuso e impreciso.

Em nome do “bem comum” Hitler ascendeu ao poder na Alemanha que depois explodiu a Segunda Guerra Mundial. Em nome do “bem comum” muitos foram executados por Stalin na antiga União Soviética. A história é cheia de exemplos. É só visitá-la, nem que seja de vez em quando.

Os governantes com tendência a tirania adoram se fazer de interessados no “bem comum” para instalar os seus planos de poder e abusar dele.

A liberdade é cara. A propriedade privada é sacrossanta. Governo que atenta contra a propriedade privada – vida, bens, liberdade – em nome do “bem comum”, geralmente exaspera de seu poder indo muito além do que lhe é permitido. É só ver as imagens que correm nas redes sociais de pms indo até a casa das pessoas, sem mandado judicial, para encerrar reuniões que acontecem dentro das residências. Atos tiranos truculentos contra pessoas simples, vendedores de rua, camelôs, feirantes, dentre outros trabalhadores pobres que estão sentido da pior forma o poder repressivo e ilegal e/ou ilegítimo do Estado.

Contudo, 2022 está aí. Espero que o eleitor não tenha memória curta e puna, com o voto - já que com a justiça desse país não dá para contar - esses aspirantes a tiranetes que nos atazanaram nessas semanas de março de 2021. A democracia dará conta, ou outra força que venha antes, quem sabe. Poder não aceita vácuo, muito menos abuso.

 

 

 

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