Marielle e os homicídios

Cientista Político José Maria Nóbrega


A última semana foi muito difícil. O caso do assassinato brutal da vereadora pelo PSOL do Rio, Marielle Franco, fez entrar em erupção uma série de postagens nas redes sociais, de todos os vieses ideológicos, algumas beirando a total falta de humanidade. Marielle era uma mulher interessante, engajada na causa pelos mais pobres e excluídos das favelas do Rio de Janeiro, lutava contra a violência estatal. A investigação está em curso e muito se especula sobre o assunto. Mas, quantas mulheres são assassinadas por ano no país? Qual o perfil estatístico da vítima de homicídio? Quais as causas da violência homicida? Isso, ninguém parece querer saber.
No último ano disponível nos dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2017), foram 4.657 mulheres assassinadas no país, o que equivale a 7,5% dos mais de 61 mil homicídios, em 2016. O perfil estatístico da vítima de homicídio no Brasil é jovem, do sexo masculino, tem entre 15 e 39 anos de idade, baixo nível de escolaridade, cor da pele parda e mora nas periferias desassistidas pelo estado nas pequenas, médias e grandes cidades.
A questão mais importante é: o que causa tanta violência no Brasil?
Não há fator causal único que explique, o fenômeno do crime violento é multicausal e são muitas as variáveis que causam o crescimento da criminalidade violenta. Taxa de desemprego, nível de escolaridade dos mais jovens, coorte jovem, ineficiência da polícia, lacuna do sistema carcerário, judiciário lento e ineficaz, lei de execução penal permissiva, são as principais causas. São as que mais apresentam nível de relação causal estatisticamente falando.
Quando a taxa de desemprego aumenta, há uma tendência da curva da violência também crescer, pois muitos dos jovens que são vitimados e, ao mesmo tempo, são algozes na dinâmica da criminalidade, tem baixíssimos níveis de escolaridade. Escolaridade e taxa de emprego tem forte correlação, quando uma cresce a outra decresce. Ou seja, quando a taxa de desemprego cresce numa realidade de baixo nível de escolaridade, fica mais fácil, num contexto propício para tal, o recrutamento desses jovens para o crime. O resultado: aumento nas taxas de homicídios.
O pesquisador do IPEA, Daniel Cerqueira, testou o efeito do nível de escolaridade na renda das pessoas. Quanto maior o nível de escolaridade, maior o efeito na renda, o que faz a pessoa ter menos atração pelo crime. Nas palavras de Daniel (CERQUEIRA, 2014. Causas e consequências do crime no Brasil. Tese de Doutorado. PUC-Rio) a partir do oitavo ano de estudo, a menor taxa de vitimização passa a predominar, fazendo com que as curvas de “disposição ao crime” sejam deslocadas para baixo (pg. 182).
No brilhante trabalho “Por que cresce a violência no Brasil” (2014. Ed. PUCMINAS, Belo Horizonte), os cientistas sociais Luiz Flávio Sapori e Gláucio Soares escancararam o efeito da ineficiência punitiva do Estado como uma das causas do crescimento do crime violento. Afirmaram os autores que, de acordo com o Código de Processo Penal, a partir da Lei 11.689/08, o tempo máximo para um processo de homicídio ser transitado e julgado é de 315 dias. No entanto, o tempo do “Brasil real” é de, em média, 1.840 dias!
Em pesquisa que executei em minha tese de doutorado (NÓBREGA JR., J.M. 2010. Os Homicídios no Brasil, no Nordeste e em Pernambuco: dinâmica, relações de causalidade e políticas públicas. PPGCP. UFPE) testei os níveis de eficiência investigativa da polícia pernambucana. Com dados de 2007, foi demonstrado que apenas 5,4% dos crimes de homicídios em Pernambuco foram denunciados, julgados e finalizados como processo na Justiça. Ou seja, mais de 90% dos crimes sequer chegaram a ser investigados pelas instituições coercitivas em Pernambuco.
O sistema carcerário é outro fator causal. Sérgio Adorno e Fernando Salla (“Criminalidade organizada nas prisões e os ataques do PCC”. Estudos Avançados. Vol. 61. 2007) apresentaram o resultado do fracasso em controlar os presos no sistema prisional paulistano e como isso fez surgir o principal grupo criminoso do país, o Primeiro Comando da Capital (PCC). Da lacuna proporcionada pelo estado, o crime foi potencializado e, como as políticas de segurança extramuros se tornaram mais enfáticas em SP, o PCC terminou migrando para outras unidades da federação, tendo forte correlação com o crescimento do crime violento na região nordeste.
O nordeste apresentou crescimento brutal dos homicídios a partir de meados da década passada e hoje é a região mais violenta do Brasil. O sistema carcerário é parte desse problema. Utilizando os dados do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), a população carcerária aumentou exponencialmente nos últimos vinte anos, saltando de um pouco mais de 95 mil indivíduos, para mais de 700 mil, dos quais, em média, 40% sem o devido processo legal, ou seja, sem direitos garantidos de ampla defesa. Abarrotando o sistema e enriquecendo as facções criminosas.
O que se vê é a total falta de capacidade do estado de direito de se completar, ferindo drasticamente a qualidade de nossa democracia. A morte de Marielle é espantosa e contribui ainda mais para a situação de insegurança pública no país, mas entender a dinâmica da criminalidade e seus efeitos causais deve ser a primeira coisa a ser feita por quem precisa controlar rapidamente a situação de falência social pela qual passamos: o Estado e os seus governos.

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