SEGURANÇA PÚBLICA: AINDA MUITO A FAZER

Entre casos de linchamento, greves de policiais, conflitos entre black blocks e agentes do Estado, aumento expressivo do número de pessoas mortas em decorrência de ações policiais e crescimento dos assassinatos de policiais, uma coisa é clara: o Estado brasileiro faliu na tarefa de garantir paz e segurança a seus 200 milhões de cidadãos

Por Samira Bueno*
O ano de 2014 foi marcado por uma série de colapsos no campo da segurança pública. Crise iniciada em janeiro com as decapitações no sistema prisional maranhense, o ano chega ao seu fim com diversos casos de linchamento, greves de policiais, manifestações contra a Copa do Mundo, conflitos entre black blocks e agentes do Estado, aumento expressivo do número de pessoas mortas em decorrência de ações policiais, crescimento dos assassinatos de policiais, dentre outros.
O problema é que, se as cenas acompanhadas nos últimos doze meses chocaram a opinião pública e colocaram em dúvida a capacidade do Estado brasileiro de garantir o direito à vida de milhões de cidadãos, fato é que os casos citados são apenas alguns exemplos de uma tragédia anunciada.
O recém lançado Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostrou que, apenas em 2013, a cada dez minutos uma pessoa foi assassinada no país. Isso significa que 53.446 pessoas tiveram suas vidas ceifadas pela violência, a maioria jovens, negros e moradores das periferias dos grandes centros urbanos. A publicação também mostrou que tivemos no mesmo ano 50.224 estupros registrados em delegacias, mas, por ser um crime com altos índices de subnotificação, o número real deve girar em torno de 143 mil vítimas. Como se este não fosse um grave problema para as políticas públicas de segurança e saúde, recentemente o tema voltou a ser objeto de discussão após um infeliz comentário do deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ) direcionado à deputada Maria do Rosário (PT-RS) – cabe lembrar que este senhor foi o deputado mais votado na última eleição do Rio de Janeiro, com quase meio milhão de votos.
Também concluímos que 490 policiais civis e militares foram assassinados em 2013, a maioria fora de serviço, e que as duas policias mataram em cinco anos (2009-2013) a mesma quantidade de pessoas que as polícias norte-americanas mataram em 30 anos (1983-2012). Como agravante, pelos dados já coletados, provavelmente teremos aumento de ambas as estatísticas quando fecharmos os dados de 2014, em mais uma evidência de que o Estado brasileiro faliu na tarefa de garantir paz e segurança aos 200 milhões de brasileiros.
Se o diagnóstico revela uma profunda crise, este também é o momento para cobrarmos dos recém-eleitos governantes ações concretas que podem dinamizar a forma como o tema vem sendo tratado pelo poder público há mais de duas décadas no Brasil. Política pública de segurança é assunto importante demais para ficar relegado a segundo plano ou para ser atribuído apenas como responsabilidade dos estados.
Já passou da hora da União assumir protagonismo nesta discussão, propondo uma real Política Nacional de Segurança Pública e um Plano Nacional de Redução de Homicídios. Estudo conduzido por pesquisadores do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Instituto Igarapé, IPEA e NEV/USP mostrou que o país poderia assumir uma meta de redução de 5,7% dos homicídios anualmente apenas adotando estratégias que estados como São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco e Espírito Santo adotaram na última década, pautadas pela aproximação das polícias com a população, pelo uso intensivo de informações e pelo aperfeiçoamento da inteligência e de técnicas investigativas. Ou seja, o Brasil tem experiências de sucesso que podem e devem ser compartilhadas.
A Câmara dos Deputados já deveria ter aprovado o PL 4.471/2012, de autoria do deputado Paulo Teixeira (PT-SP), que acaba com o registro de “resistência seguida de morte”, mecanismo amplamente utilizado pelas polícias brasileiras para não investigar os crimes cometidos pelos maus policiais. Também corremos o risco de um grande retrocesso legislativo na área, já que a Câmara criou uma Comissão Especial – cujos deputados membros são financiados pela indústria da bala –  que não apenas revoga o Estatuto do Desarmamento, mas permite ainda que cada cidadão tenha nove armas, o que resulta na possibilidade de 5.400 balas por mês por pessoa. Se as experiências brasileiras que tiveram sucesso na redução dos homicídios nos últimos anos foram aquelas que levaram a sério a tarefa do controle de armas, todos corremos o risco do agravamento do quadro existente com a aprovação do PL 3.722/2012.
Neste interim, as soluções normalmente colocadas pelos nossos governantes têm sido na lógica do endurecimento penal, como se o problema brasileiro estivesse exclusivamente em leis lenientes.  Esquecem-se de que as polícias brasileiras solucionam apenas 8% dos mais de 50 mil homicídios anuais, e que estes profissionais estão submetidos a riscos cada vez maiores, além de serem, em geral, mal remunerados; esquecem-se de que temos 40% da nossa população prisional em situação provisória por incapacidade do Judiciário; esquecem-se de que faltam mais de 200 mil vagas neste mesmo sistema prisional, que ao invés de ressocializar, transformou-se em escola para o crime organizado; esquecem-se de colocar a questão do controle das polícias, interno e externo, como agenda prioritária; bem como se esquecem de que todas as vidas deveriam ter o mesmo valor.
Temos que promover reformas urgentes na arquitetura institucional do modelo de segurança pública brasileiro, de modo que ele seja capaz de dar as respostas adequadas ao crime e à violência. Se avançamos muito na última década em reduzir a pobreza e retiramos milhões de brasileiros da miséria, não conseguimos ainda garantir segurança e direitos dos cidadãos.
A presidente Dilma anunciou em setembro que a União deveria participar mais dos assuntos relativos à segurança e prometeu encaminhar ao Congresso uma PEC que insira a segurança pública no rol de matérias de competência concorrente entre União, Estados e Municípios. Se esta é uma medida que deve ser louvada e cobrada, precisamos avançar em uma discussão sobre como possibilitar maior coordenação e integração de esforços entre as três esferas de governo e suas instituições, inclusive com o compartilhamento de dados e a integração de sistemas de informação; na promoção de mecanismos de financiamento mais ágeis e eficientes; e no acompanhamento e monitoramento dos resultados das políticas que têm sido desenvolvidas, cobrando do poder público soluções mais concretas e que não sucumbam às trocas de governo.
Em suma, temos uma enorme agenda em aberto no campo da segurança, a qual exigirá dos Executivos, Legislativos e Judiciários assumir o tema como pauta prioritária e estratégica do modelo de desenvolvimento brasileiro.
(*) Samira Bueno é diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e doutoranda da EAESP/FG

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