Homicídios, o próximo desafio

Letalidade não é distribuída igualitariamente na sociedade, mas atinge desproporcionalmente os homens jovens, negros e com baixa escolaridade

O Brasil é um dos países mais violentos o planeta, onde 1,3 milhão de pessoas foram assassinadas desde 1980, sendo que o problema se agrava a cada dia. Nesse período, a taxa de homicídios aumentou 150%, levando-nos a uma situação em que mais 56 mil vidas são perdidas a cada ano, segundo os registros oficiais. Esta tragédia não é consequência de uma cultura latente de violência, mas deve-se, em parte, ao fracasso das políticas públicas para prevenir mortes evitáveis.
O crescimento dos homicídios pode ser explicado por uma combinação de fatores de risco. Não obstante a expressiva redução da pobreza observada nos últimos anos, a persistente e alta desigualdade social joga um papel-chave. A farta disponibilidade de armas de fogo e munição é outro fator crítico, na medida em que mais de 70% das vítimas fatais são atingidos por elas. Outro elemento que contribuiu para a hipercriminalidade foi a escalada do tráfico de drogas psicoativas ilícitas, no rastro do aumento no seu consumo, de 700% na última década.
Contudo, a letalidade não é distribuída igualitariamente na sociedade, mas atinge desproporcionalmente os homens jovens, negros e com baixa escolaridade. Embora a população negra represente cerca de metade da população, participa com 69% do total de vítimas das mortes violentas. O viés racial é uma história dolorosamente persistente no Brasil. Desde 2000, os homicídios de negros vêm aumentando ao mesmo tempo em que o total de mortes de indivíduos de outras raças/cores diminuiu gradativamente.
Traduzindo em números, um adolescente negro tem uma probabilidade 2,8 vezes maior de ser assassinado do que um jovem não negro. Quando analisadas regionalmente, as diferenças nas taxas de letalidade são ainda maiores, como no caso da Paraíba, em que o negro sofre uma taxa de homicídio 1.800% maior do que a de não negros.
Ainda que exista uma violência considerável envolvendo gangues e quadrilhas, as polícias no Brasil estão fortemente envolvidas nas mortes desses jovens e negros. Desde o período militar tem se fortalecido nas organizações policiais um ethos guerreiro que faz apologia ao uso da força extrema, o que, aliás, é legitimado por determinados segmentos sociais, para quem “bandido bom é bandido morto”. Essa abordagem militarista ocasiona uma brutal repressão em áreas de baixa renda, onde o suposto “inimigo” reside.
As estatísticas sobre a violência policial são de arrepiar. A cada ano as polícias matam mais de duas mil pessoas no Brasil. Apenas no Rio e em São Paulo, mais de 11 mil indivíduos foram mortos pela polícia na década passada. É difícil imaginar que, proporcionalmente, nossas polícias matam 592 vezes mais cidadãos do que a polícia inglesa. Contudo, em termos nacionais, os números dos chamados “autos de resistência” são fragorosamente subestimados em face da falta de transparência e de controle das organizações policiais no Brasil, conforme documentado no Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Pior! Inúmeras dessas vítimas trazem no corpo sinais claros de execução, com perfurações na nuca e nas costas. Mais recentemente, algumas experiências têm procurado reverter essa tendência, como é o caso das UPPs no Rio.
O sistema de justiça criminal é parte do problema, para além da truculência e do racismo institucional, que se inicia na polícia. Algumas estimativas indicam que apenas 8% dos homicidas são identificados e indiciados pela polícia. Este indicador é de 64% nos EUA e de 80% no Canadá. Na ponta final do sistema, as nossas prisões, além de medievais, contribuem para organizar o crime que volta mais forte para as ruas. Setenta e nove por cento dos presos primários não são separados dos reincidentes e em 69% dos estabelecimentos penais não há separação do detento por grau de periculosidade. É a famosa escola do crime.
Essas questões em debate são cruciais, não apenas do ponto de vista da manutenção dos direitos civis e democráticos, mas também do ponto de vista econômico. Conforme estimativas do Ipea, as mortes prematuras por homicídios dilapidam o nosso capital humano e representam um desperdício de 2,3% do PIB a cada ano, ou cerca de R$ 43 bilhões.
Já passou da hora de as autoridades em todos os níveis governamentais, junto com a academia e a sociedade em geral, construírem um pacto e uma estratégia de redução de homicídios nacionalmente, baseada na racionalidade, em que sejam produzidos diagnósticos precisos e avaliações sobre o que funciona ou não. Nas últimas décadas o Brasil avançou significativamente em muitas áreas. Acabamos com a hiperinflação e com a pobreza extrema. Agora chegou a hora de atacarmos a hipercriminalidade. Sim, nós podemos!
Robert Muggah é diretor de pesquisa do Instituto Igarapé. Daniel Cerqueira é diretor de estudos e políticas do Estado, das instituições e da democracia do Ipea


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