Reforma das Polícias: a visão dos policiais

Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo*



Na última semana de julho ocorreu em São Paulo o 8º Encontro Anual do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), reunindo policiais, gestores e pesquisadores de vários estados brasileiros. Foram debatidos temas como políticas de redução de crimes violentos, política criminal e encarceramento, avaliação de políticas públicas de segurança, o legado da Copa na área, entre outros. No evento deste ano, foram também apresentados os resultados da pesquisa “Opinião dos Policiais Brasileiros sobre Reforma e Modernização da Segurança Pública”, realizada em parceria pelo FBSP e a Fundação Getúlio Vargas, com apoio da SENASP-MJ¹.
Por meio de um questionário eletrônico, foram enviados 463.790 convites individuais, com controle de acesso por senha, para o universo de policiais cadastrados na Rede de Ensino à Distância da SENASP/MJ (462 mil) e/ou que manifestaram diretamente interesse em responder à pesquisa (1.790). Destes, 21.101 policiais responderam, no período de 30 de junho a 18 de julho. Trata-se, portanto, de uma pesquisa censitária, não probabilística, em que os resultados não representam a visão do universo de policiais brasileiros, mas são importante contribuição para uma análise matizada e contextualizada qualitativamente, permitindo a elaboração de hipóteses exploratórias. Entre os respondentes, 52,9% são policiais militares, 22%, policiais civis, 10,4%, policiais federais, 8,4%, bombeiros, 4,1%, policiais rodoviários federais e 2,3%, servidores dos institutos de perícia.
Do total de respondentes, 73,7% se manifestaram favoráveis à ideia da desmilitarização, com a desvinculação das polícias militares ao Exército. 93,6% são favoráveis à modernização dos regimentos e códigos disciplinares, 86,7% querem a regulamentação do direito de sindicalização e de greve para os policias militares. E ainda 87,3% entendem que o foco do trabalho das Polícias Militares deveria ser reorientado para a proteção dos direitos de cidadania. Todas estas propostas apontam para a desmilitarização da polícia, significando a ruptura com regulamentos disciplinares próprios de instituições militares, excessiva quantidade de níveis hierárquicos e pouco incentivo à iniciativa do policial que atua na linha de frente.
Outro tópico que chamou a atenção foi o reconhecimento de 93% dos respondentes de que a corrupção no interior da polícia dificulta a realização de suas atividades. O tema do controle interno e externo da atividade policial é chave para a profissionalização das polícias e o aumento da confiança da população no trabalho policial. A pouca confiança, aliada à falta de valorização da carreira policial nos seus diversos níveis, faz com que 34,4% dos respondentes afirmem pretender sair da corporação assim que possível, e 38,7% dizem que se pudessem teriam escolhido outra carreira.
92% dos respondentes ingressaram na carreira depois da entrada em vigor da Constituição de 1988, ou seja, já assumiram suas funções em contexto democrático. No entanto, a não implementação no Brasil de mecanismos de Justiça de Transição, com a responsabilização de policiais civis e militares pelos delitos de tortura, abuso de poder e outros praticados durante a ditadura, a não alteração da estrutura das polícias, defasada para atuar em democracia, e a manutenção de códigos disciplinares e de práticas de formação nas escolas e academias de polícia que priorizam a disciplina e a perspectiva militarista em detrimento de uma perspectiva voltada para a prestação de serviços e a administração de conflitos, permite entender também alguns números da pesquisa. Por exemplo, 42,3% dos respondentes concordaram com a afirmação de que policial que mata criminoso deveria ser premiado e inocentado pela justiça. Fica assim comprovado o peso da perspectiva do criminoso como inimigo, típica de uma formação militarista e disseminada na sociedade por condições objetivas e subjetivas relacionadas com a crescente sensação de insegurança.
Uma pesquisa como essa não é capaz de apresentar quais os melhores caminhos para a gestão da segurança pública. Longe disso, o que temos é um quadro bastante amplo a respeito das concepções, mentalidades ou representações sociais presentes nos profissionais que atuam nos órgãos que compõem as instituições de segurança pública no Brasil. Os dados apresentados dão conta de um profundo mal-estar no interior das próprias instituições policiais. A experiência de nossos 25 anos de democracia mostra que o custo político de enfrentar este debate é muito alto, e pouco se avançou em uma reestruturação visando um novo modelo de policiamento, mais apto a prestar serviços ao cidadão, esclarecer crimes e administrar conflitos cotidianos. Nos parece que as condições estão dadas para que o debate avance, para o bem das próprias polícias, da democracia e da redução da criminalidade no Brasil.
Concluo este artigo ainda sob o impacto da morte prematura de Eduardo Campos, um dos mais brilhantes e promissores homens públicos de minha geração. Como pesquisador, pude acompanhar mais de perto as políticas de segurança implementadas nos seus dois mandatos como governador de Pernambuco, o Pacto pela Vida, que contou para sua elaboração e implementação com a contribuição inestimável de José Luiz Ratton, sociólogo e professor da UFPE. Incorporando o foco na prevenção e na repressão qualificada da criminalidade, a integração de órgãos voltados para o controle do crime e a participação social na gestão, e apresentando resultados importantes na redução da violência letal, talvez seja este o mais importante legado para a democracia deixado por Eduardo Campos ao Brasil. Que saibamos reverenciá-lo.

*Sociólogo, professor da PUCRS, pesquisador do INEAC e Conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

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