Democracia e a incapacidade do estado em garantir direitos civis

Democracia e a incapacidade do estado em garantir direitos civis


José Maria Nóbrega Jr., Jorge Zaverucha e Enivaldo Rocha[1]
(Seção do artigo “Mortes por agressão em Pernambuco e no Brasil: um óbice para a consolidação da democracia” publicado na Revista de Sociologia e Política, vol.19 no.40 Curitiba Oct. 2011. http://www.scielo.br/pdf/rsocp/v19n40/05.pdf)

Existem várias definições de democracia. Para todos os gostos. Inclusive há a tentação de achar-se que democracia consiste na confluência de todas as coisas boas, tal como fez-se, analogamente, com o conceito de socialismo nos anos 1960 e 1970 (ROEMER, 1999).
A igualdade formal (procedimental) da democracia liberal pode servir de fachada para a manutenção de níveis substantivos de desigualdade e de violações de direitos civis. As desigualdades de riqueza e de poder impedem o alcance de igualdade nas oportunidades substantivas (COHEN, 1998). Por sua vez, a igualdade social sem liberdade política desemboca em ditaduras populares por falta de competição eleitoral e de respeito aos direitos humanos. Há ainda um outro óbice, de natureza metodológica. Trata-se da dificuldade de encontrar-se um padrão de medição que possa ser considerado como a essência da democracia "substantiva". E mais, como apontar qual das "substancias" será escolhida sem voltar a cair no proceduralismo? (SHAPIRO, 2003).
Será que procedimento e substância devem ser vistos como entidades à parte que não se influenciam reciprocamente? Democracia deve apenas assegurar os direitos daqueles que querem lutar politicamente por suas demandas, pouco se importando com as desigualdades sociais e jurídicas? É possível obter procedimentos com substância evitando que a democracia fique "oca"? E, simultaneamente, substância com procedimentos impedindo que a democracia seja inócua? Como conseguir um meio-termo entre democracia como mera lista de procedimentos e democracia que se identifique com a concepção substantiva das necessidades da população?
Aos poucos, o conceito de democracia schumpeteriano (SCHUMPETER, 1942), como sinônimo de competição política vem sendo crescentemente questionado. Não basta saber como os governantes são selecionados, mas importa saber como o governo é exercido. E se os direitos dos cidadãos, como o de ir e vir, ao serem violados são reparados. Ao privilegiar o componente político da democracia, Schumpeter ignora que os direitos políticos que lastreiam a competição eleitoral estão assentados sobre os direitos civis. E, portanto, merecem destaque, pois são direitos interrelacionados.
O Estado de Direito democrático pressupõe a existência de segurança jurídica. Essa segurança inexiste onde prevalece a impunidade, i. e., ocorrência de violações à lei sem que haja sanção. A segurança jurídica só pode florescer quando há uma ordem conhecida e respeitada. Ordem no sentido de que são pessoas que convivem sob determinada forma e não apenas um conjunto de leis. A distância entre o país legal e o país real aumenta à medida que direitos civis não são aplicados na garantia dos direitos básicos à vida e à integridade física dos indivíduos.
Juridicamente, os brasileiros podem ser definidos como pertencentes a diferentes "classes". Carvalho (2003) lista as três "classes". Para os da primeira, a lei só funciona em seu beneficio. Os de segunda "classe" estão sujeitos tanto aos rigores como aos benefícios da lei. Os de terceira classe não têm seus direitos protegidos seja porque não conseguem acesso à Justiça ou porque quando têm acabam sendo regularmente prejudicados. Ou seja, para eles vale apenas o Código Penal. E, acrescentaríamos, também a Polícia. Desse modo, o poder Judiciário funciona bem para quem não tem direito, e mal para quem o tem.
A insegurança jurídica continua sendo um problema contingente no Brasil. Portanto, duas das características do Estado de direito consagradas pelo ideário liberal encontram-se, ao menos, parcialmente ausentes: a previsibilidade e a igualdade. Ao contrário do que pensam os liberais, a sociedade é composta muito mais por interesses organizados do que por indivíduos isolados. Holmes (2003) lembra que os direitos dos proprietários de terra foram antes garantidos do que os dos órfãos. Portanto, por definição nenhum estado liberal ou democrático trata igualmente todos perante a lei. Quanto mais em uma sociedade tão desigual quanto a brasileira. Nela, assimetrias de poder manifestam-se tanto na elaboração, interpretação como na aplicação das leis. Afinal, quanto de desigualdade jurídica a democracia tolera?
No caso brasileiro, se a competição eleitoral desenrola-se em padrões aceitáveis, o mesmo não se pode dizer em relação aos direitos civis. É alvissareira a melhoria dos mecanismos de contrapesos (checks & balances) no sentido de resolver o dilema madisoniano da tirania da maioria. Contudo, é frustrante o retrocesso na dimensão da segurança física individual. A violação dos direitos humanos não é algo exclusivo dos regimes autoritários. A truculência policial e da bandidagem desafiam os sistemas políticos. As agências monopolizadoras do uso legítimo da força, no sentido weberiano, mostram-se autônomas vis-à-vis às autoridades democraticamente constituídas. O novo tipo de ameaça é descentralizado. Os abusos do Executivo dão lugar aos abusos de um tipo inferior de burocracia, como a de policiais e de juízes (MAGALONI, 2003).
Bem mais precioso que a vida não existe. A liberdade de ir e vir do brasileiro está cada vez mais deteriorada, fruto da insegurança pública, particularmente nos grandes centros urbanos. O direito individual essencial, o de existir fisicamente, é ameaçado tanto pelos agentes estatais, mas, primordialmente, por outros indivíduos. E o Estado mostra-se cada vez mais incapaz de defender os indivíduos destas violências.




[1] José Maria Nóbrega JR.: Professor da UFCG e Coordenador do NEVU; Jorge Zaverucha e Enivaldo Rocha: Professores do Departamento de Ciência Política da UFPE.

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