Condições de detenção no Brasil vinte anos depois do massacre do Carandiru


José Maria Nóbrega Jr. – Cientista Político e Professor da UFCG

EM OUTUBRO DE 2012 faz vinte anos do massacre ocorrido nas dependências do complexo prisional conhecido como Carandiru em São Paulo. Cento e onze pessoas assassinadas numa ação desastrosa para dizer o mínimo. As mortes foram periciadas e em quase todas foram caracterizadas execuções sumárias. Nenhum tiro sequer foi disparado por parte dos detentos dos quais oitenta e quatro ainda não tinham sido julgados, ou seja, eram “inocentes”, pois não tiveram acesso ao devido processo legal, nem a ampla defesa, ambos direitos constitucionais!
Dito isto, e averiguando as condições de detenção no Brasil, a realidade ainda permanece semelhante aos anos anteriores, ou seja, o sistema prisional brasileiro continua desestruturado e passando por cima do estado de direito. “Maltratar seriamente prisioneiros sob a custódia da polícia, chegando algumas vezes à tortura, é uma prática ainda infligida aos suspeitos comuns, provavelmente em mais países do que temos conhecimento. E instituições de detenção em muitos países impõem condições degradantes, cruéis e inumanas a seus presidiários, condições que algumas vezes podem ser descritas como tortura” (RODLEY, 2000: 40).
O trecho citado acima foi retirado do artigo de Nigel S. Rodley, “Tortura e Condições de Detenção na América Latina” publicado no livro Democracia, Violência e Injustiça que fora organizado pelos professores/pesquisadores Juan Méndez, Guillermo O´Donnell e Paulo Sérgio Pinheiro, este último observador internacional de direitos humanos da ONU. Rodley é professor de direito da Universidade de Essex, Reino Unido, era relator especial das Nações Unidas sobre tortura quando produziu o texto supracitado. Percebe-se na leitura do trecho do seu artigo em destaque que as condições estruturais das unidades prisionais no que trata a região da América Latina, por si só já é uma tortura!
No Brasil sua população prisional ultrapassa dos quatrocentos e cinquenta mil detentos. Mais de 174 mil estão em regime fechado. A tendência é de crescimento das prisões. Mas, além do déficit de vagas, as estruturas das cadeias públicas, delegacias e presídios são caóticas em sua maioria. Insalubridade e superlotação são constantes. Os maus-tratos são vistos pela sociedade como fazendo parte do castigo àqueles que preferiram o “o caminho do mal”. Isso seria uma variável que leva o corpo político do país a negligenciar políticas públicas sérias nesta área.
Alguns pesquisadores da área da segurança pública, aí me incluindo entre eles, afirmam que prender os criminosos leva a redução das taxas de homicídios e de violência em geral em curto prazo, em alguns contextos sociais. Contudo, quando se trata da região Nordeste há relação inversa, i.e., quanto mais se prende mais violência, sobretudo a homicida. De toda a forma, as condições dos presídios podem estar causando o crescimento da criminalidade, pois não há controle interno na maioria dos presídios. Os delinquentes muita das vezes comandam o crime de dentro das unidades prisionais, nas vistas dos agentes penitenciários e, muita das vezes, com seu consentimento.
O Primeiro Comando da Capital (PPC) surgiu do ambiente de descontrole e desordem do presídio de Taubaté em São Paulo. Mas, mais do que isto, o PPC surgiu da lacuna do estado em manter o mínimo de controle civilizado dentro do presídio. A ordem e a lei do estado foram substituídas pelas regras e condutas da facção que se tornou um grupo criminoso organizado intramuros.
Dessa forma, a desestruturação física e institucional do aparato prisional brasileiro leva a duas faces negativas do sistema: 1. As condições de detenção passam por cima do estado de direito, provocando crime do estado contra a integridade física dos indivíduos em situação de privação de liberdade; 2. Tais condições terminam, como efeito colateral dos maus-tratos e tortura como técnica de controle da instituição total prisional, fomentando a criminalidade organizada intra e extramuros.
Uma das questões mais colocadas entre os especialistas em segurança pública no que tange ao aprisionamento de pessoas condenadas é a superlotação do sistema prisional. Frequentemente as instituições de detenção acolhem prisioneiros condenados e os de prisão preventiva decretada no mesmo espaço. Um dos grandes problemas encontrados é a separação de diferentes categorias de prisioneiros, como requerem os padrões internacionais (ONU) e o que rege nas leis do sistema prisional, no caso do Brasil esta lei não é cumprida.
De acordo com um dos artigos do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e um dos artigos da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), pessoas acusadas quando presas e condenadas devem ser, salvo em circunstâncias excepcionais, separadas uma da outra, sendo que à pessoa acusada deve ser dado tratamento separado apropriado ao seu status de pessoas não condenadas. Pessoas acusadas e não condenadas não podem ter o mesmo tratamento de pessoas já condenadas. Mas, em ambas as situações devem ser garantidas os direitos civis de não sofrer tortura e ter um ambiente habitável na instituição total prisional. Como frisei no início deste texto, os detentos mortos no massacre do Carandiru, em sua maioria, eram pessoas acusadas e não condenadas. Estavam todas presas juntas. Pessoas acusadas por os mais diversos crimes juntas de detentos condenados por homicídios qualificado.
A detenção não pressupõe apenas punir o indivíduo out sider, mas, além disso, fazer cumprir as regras sociais mínimas de convivência civilizada. Contudo, algumas regras são impostas ao estado como forma de conduzir o processo de detenção de pessoas condenadas. Regras de Padrão Mínimo para tratamento de presos (RPM), conforme acordos internacionais os quais o Brasil assinou. São algumas delas:
1. Onde as acomodações para dormir forem em celas individuais ou quartos, cada prisioneiro ocupará, à noite, uma cela ou quarto dele próprio. Se por razões especiais, tais como superlotação temporária, tornar-se necessário que a administração central da prisão faça uma exceção a essa regra, não é desejável ter dois prisioneiros em uma cela ou quarto;
2. Onde são usados dormitórios, eles devem ser ocupados por prisioneiros cuidadosamente selecionados como os mais convenientes para conviverem entre eles naquelas condições. Deverá haver supervisão regular durante a noite, de acordo com a natureza da instituição;
3. Toda acomodação fornecida para uso dos prisioneiros e em particular toda acomodação para dormir deve cumprir todos os requisitos de saúde, sendo dada a devida atenção às condições climáticas e particularmente ao conteúdo cúbico de ar, espaço mínimo no chão, luz, aquecimento e ventilação;
4. Em todos os lugares onde os prisioneiros forem viver ou trabalhar, as janelas devem ser grandes o bastante para permitir aos prisioneiros ler ou trabalhar com luz natural, e devem ser construídas de modo a que possam permitir a entrada de ar fresco, havendo ou não ventilação artificial. Deve ser fornecida luz artificial suficiente para os prisioneiros lerem ou trabalharem sem prejudicar a vista;
5. As instalações sanitárias devem ser adequadas para permitir a cada prisioneiro cumprir suas necessidades naturais quando necessário e de um modo limpo e decente;
6. Instalação adequada de banho e chuveiro deve ser proporcional de modo que o prisioneiro possa e precise tomar banho, em uma temperatura conveniente ao clima, tão frequente quanto o necessário para a higiene geral de acordo com a estação e a região geográfica, mas pelo menos uma vez por semana num clima temperado;
7. Todas as partes de uma instituição regularmente usadas pelos prisioneiros devem ser mantidas de modo apropriado e conservadas escrupulosamente limpas em todos os momentos.
Como pode ser visto na realidade brasileira, tais regras não são cumpridas! A detenção é uma forma de privar a liberdade do indivíduo acusado e condenado por um crime e não uma forma de punição corporal que utilizada à tortura como forma de castigo. Passados vinte anos do massacre do Carandiru, as condições do sistema prisional brasileiro pouco avançaram e o que prevalece nas cadeias públicas, delegacias e presídios são masmorras prontas para torturar e passar por cima dos direitos mais caros aos seres humanos, o da integridade física e da vida.

Comentários

Postagens mais visitadas