A diplomacia e a dissonância cognitiva


JORGE ZAVERUCHA


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Em nome do novo protagonismo nas relações internacionais, a diplomacia brasileira superestimou suas possibilidades


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Folha de S. Paulo 22 dez 2009

CHICAGO, 1954 . A dona de casa Marion Keech pressentiu que o mundo acabaria em 21 de dezembro. Os membros de seu grupo de estudos sobre objetos não identificados acreditaram na sua visão de que seriam salvos por objeto intergalático e começaram os preparativos para o apocalipse. Desfizeram-se de tudo o que tivesse ligação terrena.
O professor de psicologia Leon Festinger leu o anúncio no jornal e infiltrou-se no grupo. Trabalhava com a hipótese de que, quanto maior e mais custosa uma decisão, mais firme a adesão das pessoas às suas escolhas. Mesmo que equivocadas.
O mundo não acabou nem a nave aterrissou na Terra. Restou a Keech dizer ao grupo que, devido ao fato de eles terem irradiado tanta energia positiva, o nosso planeta fora poupado do dilúvio.
A partir desse evento, Festinger desenvolveu uma série de estudos que resultaram na elaboração da sua teoria da dissonância cognitiva, que seria um conflito resultante da contradição entre as crenças de um indivíduo e suas ações. Por exemplo, opor-se à morte de animais, mas não deixar de comer churrasco.
Como esse conflito gera desconforto, as pessoas tenderiam a não enxergar aquilo que fosse desagradável para elas. Seria um modo de evitar que novas informações sirvam para questionar suas incoerências.
Os responsáveis pela diplomacia brasileira parecem sofrer do problema da dissonância cognitiva. Para justificar a aproximação do Brasil com o Irã, alegam que a política externa deve ser pragmática, em vez de normativa. Contudo, ao se posicionarem em relação ao governo de Honduras, usam argumentos principistas. Alegam que Manuel Zelaya foi vítima de um golpe militar e que isso não pode ser tolerado.
Isso embora um dos artífices da volta de Zelaya a Honduras tenha sido o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, que por duas vezes tentou derrubar o governo constitucional de seu país. Afora a ausência de eleições multipartidárias em Cuba por mais de cinco décadas. E sem se esquecer da existência de ministro de Estado do governo Lula e de importantes aliados políticos que apoiaram o recente regime militar brasileiro.
O presidente Lula nega-se a reconhecer o resultado da última eleição presidencial, chamada antes do início desse imbróglio, por ter sido convocada por um presidente "golpista".
Ora, as eleições de Tancredo Neves e de Adolfo Suárez foram realizadas, respectivamente, pelo Colégio Eleitoral concebido pelo regime militar e pelas cortes franquistas. O vice-presidente eleito indiretamente e atual presidente do Congresso Nacional foi ativo defensor do regime militar no Legislativo. Trocou de lado ao pressentir os novos ventos. Tanto é que o general Figueiredo recusou-se a passar-lhe a faixa presidencial e saiu do Palácio do Alvorada para visitar no hospital o enfermo Tancredo Neves.
A diplomacia brasileira começou derrapando ao apenas condenar a retirada de Zelaya à ponta de baionetas do país, violando a Constituição local.
Esqueceu de também condenar a atitude de Zelaya de afrontar a Procuradoria, o advogado-geral, a Justiça e o Congresso de Honduras. Depois permitiu que Zelaya e seus correligionários usassem a sede da embaixada para fazer comício político contra o governo hondurenho.
Em nome do novo protagonismo nas relações internacionais, a diplomacia brasileira superestimou suas possibilidades. Em vez de sair dessa crise fortalecido, o Brasil vai perdendo terreno a cada dia.
Houve eleições e o partido pró-Zelaya foi derrotado. O Congresso, por sua vez, por 111 a 4, votou contra a volta de Zelaya ao poder. Ante tantas evidências de que seria preciso rever sua posição, o governo brasileiro afunda-se em suas incoerências.
Outra delas é necessitar do voto dos Estados Unidos para conseguir um assento no Conselho de Segurança da ONU, mas se indispor com o governo norte-americano em vários temas internacionais.
É clara a incompatibilidade entre essas duas cognições.


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JORGE ZAVERUCHA , 54, doutor em ciência política pela Universidade de Chicago (EUA), é coordenador do Núcleo de Estudos de Instituições Coercitivas e da Criminalidade da Universidade Federal de Pernambuco. É autor de "FHC, Forças Armadas e Polícia: Entre o Autoritarismo e a Democracia", entre outras obras.

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