O pacote anticrime e a questão do accountability horizontal no Brasil
A semana que passou ficou
marcada por um fato e uma tomada de decisão importantes. O fato, foi a prática
de tortura por parte da polícia como modus operandi na operação policial
na comunidade de Paraisópolis, em São Paulo, e por mim analisada (em http://josemarianobrega.blogspot.com/2019/12/a-tortura-como-tecnica-de-investigacao.html)
e a tomada de decisão foi a aprovação do chamado Pacote Anticrime, projeto de
lei encaminhado pelo ministro da justiça e da segurança pública, Sérgio Moro,
para apreciação e aprovação na Câmara dos Deputados e só votado na última
quarta-feira, dia 04/12/2019. O fato demonstra despreparo das instituições
coercitivas para o andamento da segurança pública cidadã em regime democrático.
A tomada de decisão demonstra a preocupação do legislativo em levar regras mais
críveis na seara do controle da violência e da criminalidade para a sociedade.
Afinal, o crime violento, a corrupção, consequência da impunidade, precisa de
um freio institucional. Mas, isso será possível quando há baixa qualidade no accountability
horizontal no Brasil?
Accountability
horizontal é um conceito trabalhado pelo cientista político Guillermo O´Donnell
e tem nos componentes liberais e republicanos seus principais ingredientes. A
história do liberalismo e do republicanismo preenche boa parte da história
moderna e contemporânea e tem nas figuras de Hobbes, Locke, Kant, Rousseau,
Mill, Montesquieu e tantos outros importantes pensadores, seus principais
expoentes. No liberalismo temos a garantia da propriedade privada (bens, vida e
liberdade) como principal elemento; no republicanismo temos na coisa pública e
no império da lei, no qual ninguém é legibus solutus, os seus principais
ingredientes. Estes componentes fazem parte do alicerce das democracias
contemporâneas, em que as mais sólidas conseguiram consolidar tal alicerce
antes mesmo da introdução das poliarquias – governos gerados pelo método
democrático eleitoral – em suas plagas. Países do ocidente europeu, América do
Norte, Austrália e Nova Zelândia teriam consolidado dispositivos liberais e
republicanos de forma coesa dando o pavimento para a democracia, os direitos
políticos.
Na América Latina, em
específico no Brasil, a tradição histórica não foi a mesma e isso pesou e ainda
pesa no processo de consolidação da democracia, que ainda não se fez presente.
O fato de Paraisópolis e o pacote anticrime são reflexos dessa fragilidade na accountability
horizontal, ou seja, nos componentes liberais e republicanos de nossa frágil
democracia. A falta de garantias reais aos direitos civis e políticos e a
capacidade de manter o equilíbrio da aplicação da lei conforme regras que
controlem o ímpeto da criminalidade violenta e da corrupção, mostra a fraqueza
das instituições políticas do Brasil em manter o jogo democrático sob regras
nas quais todos estejam sob jugo, sem o risco de indivíduos serem inimputáveis.
As violações constantes aos
direitos civis e a incapacidade do estado em manter todos em respeito forçaram
o legislador a aprovarem um “pacote” batizado como “anticrime” no intuito de
fazer tentar frear os níveis avassaladores de violência e de crime do colarinho
branco. Um dos temas do referido projeto aprovado na câmara esta semana diz
respeito a maior rigidez no cumprimento de crimes hediondos e nos de homicídios
praticados com arma de fogo.
Sabe-se que os mecanismos procrastinatórios
de sentenças por tais crimes são diversos e que indivíduos acusados destes, que
tem acesso a bons advogados podem, sim, se tornarem inimputáveis. No entanto, o
crime de homicídio, por exemplo, fica numa lacuna na qual a inoperância das
instituições de segurança na solução desses é fato. Em média, 10 a 20 por cento
dos crimes de homicídios têm alguma solução. Muito pouco quando comparado a países
de democracias consolidadas, nas quais os homicídios estão sob controle e as
taxas não ultrapassam os 5 por cem mil habitantes. Efeito da baixa accountability
horizontal.
Outro efeito danoso à
democracia é a violência ilegal praticada pelas polícias. A Polícia Militar e a
Polícia Civil são instituições que trabalham com pouca efetividade em termos de
políticas públicas de inteligência, são apartadas quanto as suas ações, em
ciclos divididos de policiamento, e, normalmente, agem de forma truculenta nas
comunidades. O Brasil é um país pobre. A maioria das pessoas vive em
comunidades e em zonas periféricas onde falta muita infraestrutura. Em muitas
comunidades sequer há abastecimento adequado de saneamento básico.
As ações das instituições de
coerção levam isso em conta. As abordagens policiais em bairros nobres são
totalmente diferentes e levam em conta a possível rede de relações sociais das
elites econômicas que vivem em tais regiões. Roberto Kant de Lima, professor da
Universidade Federal Fluminense, antropólogo, se dedica a estudar o
comportamento cultural das polícias cariocas. Seus estudos demonstram uma
relação desigual de tratamento feito pelos agentes dessas instituições quanto a
quem está recebendo a abordagem policial. Se é um indivíduo socialmente “encaixado”
no estereotipo de indivíduo de “bem” a abordagem é uma, se o indivíduo se “encaixa”
no estereotipo característico de indivíduo “suspeito” (geralmente jovem, pardo
e de baixo nível de instrução), a abordagem é outra, geralmente truculenta e
fora dos padrões. Uma polícia que enxerga tal diferença é uma instituição fora
das prerrogativas do que entendemos como accountability horizontal.
Renomados especialistas falam
em inteligência em lugar da truculência, e isso é óbvio. Mas, poucos desses
falam da trajetória histórica de nossas instituições coercitivas, as quais
precisam superar o seu passado e ethos autoritário. Sem o preenchimento
dos requisitos dahlsianos no que tange as liberdades clássicas (cidadania civil
e cidadania política, conforme Marshall) e os aspectos republicanos do império
da lei em que ninguém é legibus
solutus, ou seja, em que as eleições ocorrerão sem riscos de golpe (militar;
civil; ou institucional) e as prerrogativas civis estejam acima das prerrogativas
militares (estas precisam ser arrefecidas ao grau de defesa nacional), a
democracia estará sempre em constante crise e/ou ameaça.
A discórdia em cima dos
argumentos de Adam Przeworski e Steven Levtisky são muito mais em torno da
constante crise do que em uma crise que aparece de quando em vez. Estes cientistas
políticos interpretam as democracias pelo crivo das eleições conforme Schumpeter,
sem levar em conta as condições para o sucesso do método democrático. Para
eles, havendo eleições nas quais partidos políticos vencem em disputas
razoavelmente limpas e periódicas, há democracia. Ou seja, não levam em conta
questões de accountability horizontal. Se dizem minimalistas, mas na
verdade não há teoria democrática minimalista, pois as condições que Schumpeter
elencou, bem como os seus seguidores procedimentalistas, não eram objetivas em sua
construção. Elencar liberdades civis e políticas requer um sério exercício de
interpretação histórica e sociológica de maior envergadura. O alicerce dos
direitos políticos são as liberdades civis. Estas que sofrem constantes violações
nas chamadas novas poliarquias por O´Donnell e, por mim, de semipoliarquias/semidemocracias,
já que o tempo passou e o controle da violência e da corrupção (com sua irmã siamesa,
a impunidade) não avança e, em muitos casos, como no Brasil, se torna cada vez mais
matéria para inglês ver!
O pacote anticrime conseguirá
levar a segurança pública brasileira para o caminho da democratização? Acho difícil
enquanto não superarmos a truculência autoritária e a ineficácia das
instituições de controle social do crime (violento e corrupção) em nossas plagas.
Uma decisão legislativa baseada na provocação do executivo não é suficiente
para o avanço e consolidação da democracia em seus aspectos liberais e
republicanos quando há ausência histórica desses e o menor esforço possível dos
agentes de segurança em superá-los.
by JMN
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