A tortura como técnica de investigação
A tortura é um dos atos mais execráveis que o ser humano pode provocar a outro ser humano. Em nossa Constituição, em seu artigo 5º, inciso XLII, é considerado um crime inafiançável. É um ato repudiado por todas as democracias consolidadas. No entanto, é uma prática corriqueira e naturalizada pelas instituições coercitivas de muitas semidemocracias.
Na América Latina e Caribe, apenas Costa Rica e Uruguai são considerados países de democracias sólidas. Venezuela, Nicarágua e Cuba, países autoritários (THE ECONOMIST, 2018: 20). Portanto, a maioria dos países dessa região tem sérios problemas de avanço em seus regimes híbridos muito por questão do descontrole da violência, fruto da incapacidade de suas instituições coercitivas em manter o controle social da violência sob regras razoáveis sendo, também, parte do problema, pois agem de forma violenta ilegal em suas ações do cotidiano, sobretudo nas comunidades.
No
Brasil há um ethos autoritário nas instituições coercitivas, com
destaque às polícias (militares e civis). Tendo como base a literatura
contemporânea da ciência política, com o foco nas teorias neo-institucionais
histórica e da Escolha Racional (NORTH, 2017; HALL e TAYLOR, 2003) e no
conceito de accountability horizontal de O´Donnell (1998), a questão do ethos
autoritário no comportamento dos atores institucionais da segurança pública
brasileira – especialmente as polícias (militares e civis), com destaque maior
as PMs – é um path dependence (padrão cultural mantido na trajetória
histórica das instituições) que insiste em se manter na estrutura institucional
demandando comportamento autoritário por parte de seus agentes que se veem
estimulados a manter tal comportamento, reflexo da falta de controle por parte
de seus comandos, já que o apoio aos atos de tortura e/ou ações violentas
desproporcionais é praticamente uma regra dos agentes diretores dos órgãos
coercitivos estatais brasileiros. Numa perspectiva racional, então, agir de
forma autoritária e truculenta está na conjuntura institucional historicamente,
sendo algo naturalizado e aceito no dia a dia das polícias e, pior, dá status
dentro da corporação aos agentes mais fortes e truculentos. Quem não tortura
passa a impressão aos demais de fraqueza.
Isso
termina ferindo a concepção de legalidade intrínseca ao conceito contemporâneo
de democracia, sobretudo aos aspectos liberais e republicanos do conceito.
(NÓBREGA JR., 2009; 2019). Como dito acima, a prática da tortura é inconstitucional,
antirrepublicana e antiliberal; não só os direitos básicos de cidadania são
violados, mas, também, o princípio do império da lei (fundamental componente
republicano da democracia) se torna brando. Isso reforça o aspecto criminoso na
sociedade e nas instituições de representação. Não à toa, partidos políticos, congresso,
assembleias legislativas e câmaras municipais terem índices tão baixos de
confiança perante os cidadãos brasileiros. (LATINOBARÓMETRO, 2018).
O
caráter autoritário não está somente nas instituições coercitivas brasileiras,
está, também na própria sociedade que apresenta níveis altos de confiança nas
forças armadas e baixos índices de confiança nas instituições da democracia
eleitoral. (LATINOBARÓMETRO, 2018). Parte considerável da opinião pública
endossa o comportamento fora da lei de agentes estatais em nome da “segurança
pública e privada”. (NÓBREGA JR., 2009).
Tabela
1. Níveis de confiança nas instituições do Estado – Brasil - 2017
país
|
Forças
Armadas
|
Polícias
|
Tribunal
Eleitoral
|
Poder
Judiciário
|
Governo
|
Congresso
|
Partidos
Políticos
|
Brasil
|
50%
|
34%
|
25%
|
27%
|
8%
|
11%
|
7%
|
Fonte: Latinobarómetro
2018.
Episódios
como o da Favela Naval, em Diadema, em 1997, quando policiais militares
torturaram e mataram indivíduos em abordagens truculentas e totalmente fora da
lei, continuam nas mentes dos cidadãos civilizados mundo a fora, mas as
práticas de tortura por parte dos agentes do Estado, sobretudo aos indivíduos
situados nas zonas periféricas das cidades, continuam a existir e de forma mais
acentuada, como vimos em Paraisópolis, região metropolitana de São Paulo, mais
recentemente.
Figura
1. Imagem da ação de tortura como técnica de investigação na Favela Naval,
Diadema, São Paulo, em 1997.
Fonte: Record
7.TV
Figura
2. Imagem de ação de tortura como técnica policial em Paraisópolis, Região
Metropolitana de São Paulo, em 2019.
Fonte:
Sakamoto.uol
A
militarização da segurança pública é um obstáculo ao avanço da democracia.
(NÓBREGA JR. 2010; 2019). A teoria política contemporânea da democracia coloca
como um de seus requisitos o controle efetivo dos civis eleitos sobre as forças
armadas em assuntos que não o de defesa nacional. (MAINWARING ET AL, 2001). Forças
armadas em seara de políticas públicas de segurança é um contrassenso democrático,
fere os requisitos básicos para o preenchimento dos atributos democráticos e
trabalha contra a consolidação da democracia, inclusive em sua versão eleitoral
na qual eleições isentas e limpas é condição para o sucesso do método
democrático. Ou seja, tortura como técnica de investigação e como técnica
utilizada no cotidiano por parte dos agentes que deveriam manter a lei e a
ordem, trabalha contra a consolidação da democracia eleitoral, não é uma
questão normativa, é uma questão de método.
Figura
3. Imagem dos policiais militares afastados pelos atos de tortura em
Paraisópolis, 2019.
Fonte: G1
Globo
A
polícia brasileira é uma das que mais mata no mundo, foram 24.327 mortes
decorrentes de intervenções policiais no Brasil entre 2013 e 2018. Uma média de
4.055 mortes no período, com crescimento de 181% no comparativo 2013/2018 no
qual, em 2013, foram 2.212 mortes, e em 2018, 6.220.
Gráfico
1. Mortes decorrentes de intervenções policiais em serviço e fora de serviço,
2013 a 2018
Fonte:
Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2019).
Para
a polícia brasileira a tortura como técnica de investigação faz parte de seu modus
operandi, sem a qual dificilmente o seu trabalho tem êxito. A relação com
as comunidades é de truculência e medo o que corrobora para a chamada “lei do silêncio”
quanto aos crimes, sobretudo os mais violentos, como o homicídio. Isso cria um
problema ainda maior, pois muitos criminosos, sabendo da lacuna entre sociedade
e polícia, se sentem mais à vontade para a prática de crimes violentos, pois
sabem que podem contar com o silêncio da comunidade.
Soma-se,
então, a violência ilegal da tortura como técnica de investigação com a
contribuição involuntária da comunidade, que também enfrenta a tortura e/ou
truculência dos agentes do poder coercitivo estatal, o que gera uma séria falha
de ação coletiva na qual a informação é necessária para a investigação, mas
ninguém tem confiança em falar para os agentes do Estado, com a alta probabilidade
de indivíduos acusados sofrerem tortura para confessar por seus possíveis
crimes. Geralmente os promotores de justiça, desconfiados da polícia, tendem a não
caminhar processos adiante favorecendo o acusado sem mesmo saber se este é,
realmente, o ator do ato criminoso, o que gera ainda mais impunidade. (NÓBREGA
JR., 2009).
Dessa
forma, para o avanço do nosso regime democrático a tortura como técnica de
investigação e a truculência policial precisam ser superadas para o ordenamento
das regras democráticas sob regime republicano. As sérias consequências da
tortura no cotidiano das instituições coercitivas criam um desequilíbrio danoso
para a democracia brasileira que, não obstante ter avançado eleitoralmente, continua
com fortes características autoritárias o que afasta a possibilidade de
avançarmos como sociedade democrática. Nos mantemos numa zona híbrida de incivilismo
e violência descontrolada.
by JMN
Referências
bibliográficas:
HALL,
Peter; TAYLOR, Rosemary (2003). As três versões do neo-institucionalismo. Lua Nova [online]. 2003, n.58, pp.193-223. ISSN 0102-6445.
http://dx.doi.org/10.1590/S0102-64452003000100010.
MAINWARING, S.; BRINKS, D.; PERÉZ-LIÑAN, A.
(2001). Classificando Regimes Políticos na América Latina, 1945-1999. Dados
vol.44 no.4 Rio de Janeiro 2001 http://dx.doi.org/10.1590/S0011-52582001000400001
NÓBREGA JR., José Maria P. da (2009). Semidemocracia
brasileira: as instituições coercitivas e práticas sociais. Ed. Nossa Livraria.
Recife.
NÓBREGA JR., José Maria P. da (2010). A militarização da segurança pública: um entrave
para a democracia brasileira. Rev. Sociol. Polit. [online]. 2010, vol.18, n.35, pp.119-130. ISSN
0104-4478. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-44782010000100008.
NÓBREGA JR., José Maria P. da (2019). Democracia,
violência e segurança pública no Brasil. E-book. Editora UFCG. Campina
Grande. PB.
NORTH,
Douglass (2017). Instituições, Mudança Institucional e Desempenho Econômico.
Editora Três Estrelas. São Paulo.
O 'DONNELL,
Guillermo (1998). Accountability horizontal e novas poliarquias. Lua Nova [online].
1998, n.44, pp.27-54. ISSN 0102-6445. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-64451998000200003.
THE
ECONOMIST INTELLIGENCE UNIT (2018). Democracy Index 2018: Me too? Political
participation, protest and democracy. www.eiu.com
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