Alta criminalidade e baixa capacidade estatal

 José Maria Nóbrega - doutor em ciência política pela UFPE

Com a morte de um delegado da polícia civil com mais de trinta anos de serviços prestados, em um assalto em São Paulo praticado por um criminoso com várias passagens pela polícia e em prisão domiciliar, fica mais que escancarada a falência das instituições brasileiras. Nós temos um dos piores sistemas de justiça criminal do mundo. Um judiciário caro, burocrático, inacessível, ineficiente e inefetivo. A lei no Brasil é inefetiva e não molda as ações dos atores criminosos, só as dos indivíduos que seguem as regras.

Não é apenas retórica, é teoria e empiria. A teoria política contemporânea define um regime democrático como aquele que, além do sistema representativo regulado e institucionalizado, tem um estado de direito usável pela maioria da população. Esse estado de direito consta de uma institucionalidade na qual: 

1. Todas as leis devem ser Prospectivas, públicas e claras; 2. As leis devem ser relativamente estáveis; 3. A feitura de leis particulares [...] deve ser guiada por regras públicas, estáveis, claras e gerais; 4. A independência do Judiciário deve ser garantida; 5. Os princípios de justiça natural devem ser observados (isto é, audiência pública e justa e ausência de pressupostos); 6. Os tribunais devem ter poderes [...] para assegurar conformidade ao princípio da lei; 7. Os tribunais devem ser facilmente acessíveis; e 8. Não se pode permitir que o arbítrio dos órgãos de prevenção ao crime deturpe a lei (Raz, 1977, pp. 198-201)

Dessa forma, um regime político democrático pressupõe leis efetivas sob um estado democrático de direito que promova justiça equânime, acesso indiscriminado à justiça e segurança pública e jurídica.  Uma democracia consolidada só se dá com accountability horizontal e sistema de justiça criminal que seja efetivo e eficaz.

Quando o sistema é inefetivo, como o é no Brasil, país que faz parte de um time de países de alta criminalidade e baixa capacidade estatal para dirimí-la, o que temos é insegurança pública e jurídica com o resultado sendo o descontrole da criminalidade e o crime organizado se tornando incontrolável.

No gráfico acima temos o coeficiente de correlação entre crime organizado - este é mensurado pelo Índice Global de Crime Organizado como sendo o escore médio de vários mercados criminais como o de drogas (cocaína, maconha etc.) e de atores criminais (como a presença de atores criminosos dentro do Estado) - e resiliência - que é a capacidade das instituições do Estado de desmantelar o crime organizado - que mostra a direção inversa entre essas duas variáveis. Quanto maior a criminalidade menor é a capacidade do Estado em combater a criminalidade. O gráfico apresenta a situação dos 193 países analisados em todos os continentes. O escore médio é medido entre 0 e 10 e quanto maior é o indicador maior é a variável. O Brasil apresentou um escore médio de 6,77 no índice de crime organizado e de 4,92 no de capacidade estatal. Não precisa ser cientista para saber que o crime está na frente do Estado.

Outro indicador forte que demonstra essa situação de falência do sistema criminal do país é o seu indicador médio de investigação criminal - que é a capacidade das instituições coercitivas em acusar e prender criminosos, se os promotores, policiais e investigadores possuem recursos adequados para exercerem as suas funções e se estão livres da corrupção - este medido entre 0 e 1, quanto maior, maior a capacidade do Estado; índice este elaborado pelo Rule of Law Index do Projeto World Justice Project; demonstrando a total ineficiência do Brasil com um índice de 0,28, abaixo da média latino americana que foi de 0,34 (NÓBREGA, 2022: 12).

A teoria que tenta explicar os problemas do Brasil na área da segurança pública e jurídica com variáveis ligadas à pobreza e a desigualdade social não é eficaz e não tem capacidade empírica para ser confirmada. A criminologia crítica baseada nessa teoria é uma quimera explicativa.

A alta criminalidade é o crescimento institucional do crime organizado numa realidade de incapacidade ou mesmo falência das instituições estatais responsáveis pelo seu controle. O recrutamento de agentes estatais para a sua fileira juntamente com o infiltrar de agentes criminosos dentro das instituições estatais são fatores decisivos e não vem merecendo o verdadeiro destaque que deveriam merecer.

Os dados do Brasil de agentes estatais participando do crime organizado e de agentes do crime agindo de dentro do Estado são alarmantes. O indicador de "atores criminosos incorporados pelo Estado" do Índice Global de Crime Organizado é de impressionantes 8,5 (entre 0 e 10, quanto maior, maior é o impacto do indicador). No Brasil, é constante nos noticiários a presença da relação entre criminosos do PCC com atores políticos do Estado, inclusive com pessoas sendo eleitas pelo processo de escolha que muitos confundem com a própria democracia.

A teoria com empiria é a melhor forma de demonstrar o real impacto da corrupção, da falta de accountability e da inefetividade da lei como as principais variáveis explicativas do crescimento do crime organizado no mundo, em especial na América Latina e no Brasil. Dos 63 países em que mais o crime organizado é forte em meio a baixa capacidade estatal para combatê-lo, 13 são latino-americanos e o Brasil está entre eles.

O Brasil é um país violento, de alta criminalidade, crime organizado e baixa capacidade estatal e não é o mais pobre entre os que estão classificados nesta categoria. É um país com uma democracia eleitoral funcionando, com os poderes legislativo e executivo que buscam negociar as suas agendas políticas e com um judiciário de forte ativismo político. Mas, não é uma democracia consolidada, pois o resultado das políticas públicas de segurança são pífios, o descontrole do crime organizado fortalece o crime e enfraquece ainda mais o Estado como conjunto de instituições que gerem previsibilidade nas relações sociais. O Brasil é no máximo uma semidemocracia, pois há eleições que preenchem o requisito dahlsiano da Poliarquia eleitoral, mas não garante liberdades básicas aos seus eleitores-cidadãos constantemente ameaçados pela violência resultado da criminalidade descontrada e da ineficácia das instituições coercitivas.


Referências 

Nóbrega Jr., José Maria P. da. Investigação criminal, democracia e violência na América Latina. BOLETIM IBCCRIM - ANO 30 - N.º 354 - MAIO DE 2022 - ISSN 1676-3661

Raz, Joseph. "The rule law of and its virtue". The Law Quarterly Review, nº 93, 1977: 195-211.




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