Criminalidade Organizada e a Semidemocracia Brasileira

 

Criminalidade Organizada e a Semidemocracia Brasileira

 


José Maria Nóbrega - cientista político, doutor em ciência política UFPE e professor associado da UFCG

 

O crime organizado é a maior ameaça para a estabilidade dos países da América Latina (CORRALES e FREEMAN, 2024). Nas últimas décadas os estudos sobre democracia não deram relevância ao perigo de atores não eleitos, como aqueles ligados ao crime organizado, às instituições da democracia. Neste ensaio, demonstraremos como o crime organizado fragiliza as democracias na América Latina e no Brasil em particular.

Na verdade, a maioria dos países da América Latina, em torno de 75% deles (NÓBREGA JR., 2023), são regimes híbridos institucionais, ou semidemocráticos. Semidemocracia por definição, é uma situação em que uma democracia “imperfeita” caminha rumo a uma democracia com sólidas e responsivas instituições (NÓBREGA JR., 2009).

Quando vamos avaliar um regime político, a primeira coisa que devemos fazer é definir os conceitos dos regimes políticos. Uma democracia deve ter uma definição mínima, mas não submínima, como afirmaram Scott Mainwaring, Daniel Brinks e Aníbal Perez Liñán (2001). Uma definição é mínima quando todas as propriedades ou características de um ser que não são indispensáveis para sua identificação são apresentadas como propriedades hipotéticas, não como propriedades definidoras (SARTORI, 1976 APUD NÓBREGA JR., 2010). Isso levou a maioria dos cientistas políticos a definirem democracia num viés submínimo, levando o conceito a esfera dos partidos políticos, do parlamento e da relação deste com o executivo, deixando de lado a relação com o judiciário e com a má gestão da governança do estado de direito e do controle civil sobre as forças armadas e outros atores armados (milícias e traficantes, por exemplo), sobretudo para a realidade de novas poliarquias como as surgidas a partir do processo de transição nas décadas de oitenta e noventa na América Latina.

Dessa forma, definir o conceito de democracia para essa região levou a necessidade de perpassar, numa perspectiva minimalista da democracia, mas não submínima, as instituições que passam pelo crivo das eleições e das relações entre os poderes clássicos, executivo e legislativo. Os cientistas políticos que estudam a política comparada no contexto latino-americano perceberam a necessidade de incluir critérios outros que não só aqueles ligados à competição entre elites políticas que sofreram (e ainda sofrem) forte influência da visão schumpeteriana (O´DONNELL, 1999).

Scott Mainwaring e Aníbal Pérez Liñán (2023) perceberam que há grande ameaça da criminalidade organizada as democracias na América Latina, fazendo que evoluíssem no conceito de democracia já definido em seus trabalhos de duas décadas anteriores, definindo democracia como um regime político que, além dos requisitos schumpeterianos e dahlsianos, precisa incluir a preocupação com o estado democrático de direito, o controle civil sobre as forças armadas e, a partir do estudo mais recente, o controle de atores armados não eleitos e aqueles ligados ao crime organizado, com grande preocupação à governança criminal.

Mainwaring e Pérez-Liñán (2023) definiram democracia como um regime político caracterizado por existir: 1) eleições livres e justas; 2) sufrágio universal; 3) direitos civis e políticos extensamente garantidos; 4) accountability horizontal; e 5) controle civil sobre os militares e outros atores armados. Ou seja, indo além das definições clássicas de base schumpeteriana, acrescentando outros requisitos e chamando as definições clássicas do eleitoralismo e pluralismo como sendo submínimas. Há uma crítica intrínseca também a definição mínima de Sartori (1976).

Nessa linha, uma democracia com base procedimental precisa preencher todos esses requisitos para ser considerada consolidada. Violações (graves ou parciais) ao requisitos enumerados fazem o país ser classificado como semidemocrático. No caso de violação ao princípio de eleições livres e limpas, o país é automaticamente classificado como autoritário ou não-democrático, sem a necessidade de averiguação dos requisitos subsequentes (MAINWARING ET AL, 2001).

Como a maioria dos países da região não preenchem os requisitos mínimos da definição de democracia,  a lacuna proporcionada pela ausência de capacidade dissuasória do Estado como monopólio da força e da violência legal, leva o crime organizado a ter menor custo de transação para o empreendimento criminoso.

Mainwaring e Pérez-Liñán (2023) vão mostrar que a governança criminal na América Latina é deficitária e utilizaram como variável de controle as taxas de homicídios. As taxas de homicídios estão correlacionadas com o sistema de justiça criminal e a qualidade das democracias. Quando as instituições do sistema de justiça criminal falham, a criminalidade cresce e a democracia tende a ser de menor qualidade (NÓBREGA, 2022a; 2024).

O Latinobarômetro (2024) demonstrou como a violência patrocinada pelo crime organizado, o tráfico de drogas e as quadrilhas de criminosos vem afetando a estabilidade das democracias na região:

El crimen organizado, el narcotráfico y las maras son hoy día la violencia que más preocupa a los pueblos según las encuestas que indagan sobre “el problema principal” en cada país. En este mismo estudio la delincuencia, la seguridad, aparece con altos niveles de importancia, pero no en primer lugar en la mayor parte de los países” (Informe, Latinobarómetro, 2024: 87). 

Pesquisas aqui no Brasil também apontaram para a segurança pública como a maior preocupação do cidadão. Em pesquisa recente, a QUAEST demonstrou que os brasileiros estão mais preocupados com a sua segurança nas ruas do que com questões sociais (https://g1.globo.com/politica/noticia/2025/04/02/violencia-passa-a-ser-a-maior-preocupacao-do-brasileiro-aponta-pesquisa-quaest.ghtml). Assaltos, roubos, assassinatos, latrocínios preenchem os noticiários brasileiros dia e noite sem que o poder público consiga colocar tais práticas criminosas sob controle.

Ainda sobre a pesquisa do Latinobarómetro (2024), “la violencia del narcotráfico es más frecuente en Costa Rica y Brasil con 35%, Uruguay con 32% y Ecuador y Chile con 30%”. O Brasil no topo da lista, sobretudo pela presença marcante de suas duas principais organizações criminosas: o PCC e o CV.

O mapa da criminalidade organizada apresenta o Brasil hoje com mais de oitenta facções criminosas prisionais. O crime organizado no Brasil nasceu da negligência do estado de direito no âmbito dos presídios, o que corrobora para a inclusão da governança criminal como fator de democracia.

Nas regiões Norte e Nordeste, a criminalidade se tornou endémica, com os homicídios “migrando” do Sudeste para essas regiões a partir de meados dos anos 2000 (NÓBREGA JR.; NÓBREGA, 2022).

Dados mais recentes do Anuário Brasileiro de Segurança Pública reforçam essa tese quando as taxas de mortes violentas intencionais dessas duas regiões são as mais expressivas do país, com taxas 5,6 e 6 vezes (Norte e Nordeste, respectivamente) superiores a média mundial de violência homicida (NÓBREGA JR., 2025).



 

A crescente da criminalidade no Brasil fragilizou a sua democracia, fazendo com que os critérios da democracia fossem violados, não obstante as eleições ocorrerem conforme a teoria. Nas principais plataformas de mensuração e classificação de regimes políticos (NÓBREGA JR., 2022b), o Brasil sempre foi classificado como uma democracia falha, o que podemos defini-lo como sendo uma Semidemocracia.

Dito isto, temos a convicção que a falta de uma gerência adequada da governança criminal (controle das taxas de homicídios, investigação criminal, sistema de justiça criminal com accountability) leva a potência do crime organizado num ambiente no qual o custo de transação é baixo para a prática do crime (NORTH, 2018; BECKER, 1968).

A governança criminal como fator de qualidade democrática ainda não entrou na agenda dos principais tomadores de decisão do país. Há uma visão equivocada do crime e do criminoso permeado por uma teoria que não contribui para o bom gerenciamento da governança criminal como fator de qualidade democrática: a criminologia crítica.

Esta teoria tem em sua base uma visão romântica da sociedade capitalista e relativiza o crime e o criminoso os vendo muito mais como atores sociais de “resistência” aos exploradores burgueses do que a visão democrático-liberal na qual o crime deve ser punido de forma adequada para o fortalecimento e aumento do custo de transação criminal, garantindo direitos básicos de cidadania.

Enquanto atores políticos que bebem e Foucault e Marx para entender o crime forem os responsáveis pela condução da governança criminal e da segurança pública no Brasil, dificilmente consolidaremos a democracia em nossas plagas. Democracia é um regime político que, numa perspectiva mininalista e procedimental da democracia, deve ir além do critério eleitoral focando nos direitos de primeira e segunda gerações e na capacidade do estado em implementar o monopólio da força e da violência legal como mecanismos de freio à tirania do crime organizado e dos atores violentos. No atual cenário regional e nacional, o que temos é regime político que, no máximo, podemos defini-lo como semidemocrático devido a falta de controle do crime organizado e seu principal produto: a violência.

* As Mortes Violentas Intencionais correspondem a soma de homicídios dolosos, latrocínios, mortes decorrentes de intervenção policial, mortes de policiais e mortes resultado de agressão dolosa.

 

Referências

BECKER, G. Crime and punishment: an economic approach. Journal of Political Economy, v. 76, n. 2, p. 169-217, 1968.

CORPORACIÓN LATINOBARÓMETRO. Informe 2024. La Democracia Resiliente. www.latinobarometro.org 

CORRALES, J.; FREEMAN, W. “Como o crime organizado ameaça a América Latina”. Journal of Democracy em Português. Volume 35, Número 4 Outubro 2024

MAINWARING, Scott et al. Classificando regimes políticos na América Latina,

1945-1999. Dados, v. 44, n 4. Rio de Janeiro, 2001.

MAINWARING, S.; PÉREZ-LIÑÁN, A. “Por que as democracias da América Latina estão estagnadas”. Journal of Democracy em português. Volume 12, Número 1, São Paulo, Junho de 2023

NÓBREGA JÚNIOR, José Maria Pereira da. “Violência no Brasil (2011-2023)”. Boletim IBCCrim - Ano 33 - Nº 388 - Março de 2025 - e-ISSN 2965-937X

NÓBREGA, José Maria. Violência, Democracia e Justiça Criminal em cinco países da América do Sul (2014-2020). Direito, Processo e Cidadania. Recife, v. 3, n.1, p.1-12, jan/abr., 2024. DOI: ttps://doi.org/10.25247/2764- 8907.2024.v3n1.p1-12

NÓBREGA, José Maria Pereira da. “Deteriorando a Democracia na América Latina”. REVISTA ESTUDOS POLÍTICOS - ISSN 2177-2851 Volume 14_ Número 28 2023/02

NÓBREGA, José Maria. DEMOCRACIA E JUSTIÇA CRIMINAL: O SEU ALTO NÍVEL DE ASSOCIAÇÃO. Direito, Processo e Cidadania. Recife, v. 1, n. 2, p. 145-166, maio/ago., 2022a

NÓBREGA JR., J.M.P da. “Investigação Criminal, Democracia e Violência na América Latina”. BOLETIM IBCCRIM - ANO 30 - N.º 354 - MAIO DE 2022 - ISSN 1676-3661

NÓBREGA, José Maria Pereira da. “Classificação de Regimes Políticos na América Latina: um estudo comparado das principais plataformas de mensuração”. Revista Estudos Políticos. V.13, n. 26, 2022b. p. 2-21.

NÓBREGA JR., J.M.P. da. “A Semidemocracia brasileira: autoritarismo ou democracia?” Sociologias, Porto Alegre, ano 12, no 23, jan./abr. 2010, p. 74-141

NÓBREGA JÚNIOR, José Maria Pereira da. Semidemocracia brasileira: as instituições coercitivas e práticas sociais.  – Recife - PE: Nossa Livraria, 2009.

NÓBREGA JÚNIOR, José Maria Pereira da.; NÓBREGA, Duilia Dalyana Ribeiro Santos da.  Morte matada : a dinâmica dos homicídios no nordeste  – Campina Grande : EDUEPB, 2022

NORTH, D.C. Instituições, Mudança Institucional e Desempenho Econômico. Editora Três Estrelas. São Paulo, 2018.

O’DONNELL, Guillermo (1999) “Teoria Democrática e Política Comparada”, Dados, v.42, n.4, Rio de Janeiro.

SARTORI, G. Parties and party systems: a framework for analysis.  New York: Cambridg University Press. 1976.

SCHUMPETER, J. Capitalismo, Socialismo e Democracia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 295-376, 1984.

Comentários

Postagens mais visitadas