Como a criminalidade está corroendo a (semi)democracia brasileira
Como a criminalidade está corroendo a (semi)democracia brasileira
José Maria Nóbrega - cientista político, doutor em ciência política UFPE e professor associado da UFCG
Corrales e Freeman (2024), em artigo publicado no Journal of Democracy, afirmaram que o crime organizado é a maior ameaça a estabilidade dos países da América Latina. Destacaram que nas últimas décadas os estudos sobre democracia não deram relevância ao perigo de atores não eleitos, como aqueles ligados ao crime organizado, às instituições da democracia.
De certa forma, esses autores revelam o que venho falando há duas décadas: do vazio conceitual em torno do conceito de democracia e como isto leva a maioria dos comentaristas e cientistas políticos a uma visão subminimalista da democracia.
Quando vamos avaliar um regime político, a primeira coisa que devemos fazer é definir os conceitos dos regimes políticos. Uma democracia deve ter uma definição mínima, mas não submínima, como afirmaram Scott Mainwaring, Daniel Brinks e Aníbal Perez Liñán (2001). Uma definição é mínima quando todas as propriedades ou características de um ser que não são indispensáveis para sua identificação são apresentadas como propriedades hipotéticas, não como propriedades definidoras (SARTORI, 1976 APUD NÓBREGA JR., 2010). Isso levou a maioria dos cientistas políticos a definirem democracia como democracia política, levando o conceito a esfera dos partidos políticos, do parlamento e da relação deste com o executivo, meio que deixando de lado a relação com o judiciário e com a má gestão da governança do estado de direito e do controle civil sobre as forças armadas, sobretudo para a realidade de novas poliarquias como as surgidas a partir do processo de transição nas décadas de oitenta e noventa na América Latina.
Dessa forma, definir o conceito de democracia para essa região levou a necessidade de perpassar, numa perspectiva minimalista da democracia, as instituições que passam pelo crivo das eleições e das relações entre os poderes clássicos, executivo e legislativo. Os cientistas políticos que estudam a política comparada no contexto latino-americano perceberam a necessidade de incluir critérios outros que não só aqueles ligados à competição entre elites políticas que sofreram (e ainda sofrem) forte influência da visão schumpeteriana.
Scott Mainwaring e Aníbal Pérez Liñán (2023) perceberam, assim como Corrales e Freeman em 2024, que há grande ameaça às democracias na América Latina do crime e evoluíram no conceito de democracia já definido em seus trabalhos de duas décadas anteriores, definindo democracia como um regime político que, além dos requisitos schumpeterianos e dahlsianos, precisa incluir a preocupação com o estado democrático de direito, o controle civil sobre as forças armadas e, a partir do estudo mais recente, o controle de atores armados não eleitos e aqueles ligados ao crime organizado.
Mainwaring e Pérez-Liñán (2023) definiram democracia como um regime político caracterizado por existir: 1) eleições livres e justas; 2) sufrágio universal; 3) direitos civis e políticos extensamente garantidos; 4) accountability horizontal; e 5) controle civil sobre os militares e outros atores armados. Ou seja, indo além das definições clássicas com base em Schumpeter e em Dahl, acrescentando outros requisitos e chamando as definições clássicas do eleitoralismo e pluralismo como sendo submínimas. Há uma crítica intrínseca também a definição mínima de Sartori (1976).
Sou adepto da definição dos autores supracitados e ela ajuda a entender o que Corrales e Freeman (2024) afirmam logo no início de seu texto do Journal of Democracy. A maior ameaça aos regimes políticos democráticos da América Latina é o crime organizado e este não fora incluído como requisito democrático, isto é, o seu controle em uma governança criminal razoável.
Mainwaring e Pérez-Liñán (2023) vão mostrar que a governança criminal na América Latina é deficitária e utilizaram como variável de controle as taxas de homicídios. Apresentei como as taxas de homicídios estão correlacionadas com o sistema de justiça criminal e a qualidade das democracias em várias publicações (NÓBREGA, 2022; 2024). O mais recente documento do Latinobarômetro (2024) demonstrou como a violência patrocinada pelo crime organizado, o tráfico de drogas e as quadrilhas de criminosos vem afetando a estabilidade das democracias na região.
“El crimen organizado, el narcotráfico y las maras son hoy día la violencia que más preocupa a los pueblos según las encuestas que indagan sobre “el problema principal” en cada país. En este mismo estudio la delincuencia, la seguridad, aparece con altos niveles de importancia, pero no en primer lugar en la mayor parte de los países”.
As pesquisas aqui no Brasil também apontam a segurança pública como a maior preocupação do cidadão. Em pesquisa recente, a QUAEST demonstrou que os brasileiros estão mais preocupados com a sua segurança nas ruas do que com a inflação dos alimentos.
Voltando a falar da pesquisa do Latinobarómetro, “La violencia del narcotráfico es más frecuente en Costa Rica y Brasil con 35%, Uruguay con 32% y Ecuador y Chile con 30%”. O Brasil no topo da lista, sobretudo pela presença marcante de suas duas principais organizações criminosas: o PCC e o CV.
O mapa da criminalidade organizada apresenta o Brasil hoje com mais de oitenta facções criminosas prisionais. O crime organizado no Brasil nasceu da negligência do estado de direito no âmbito dos presídios, o que corrobora para a inclusão da governança criminal como fator de democracia.
A crescente da criminalidade no Brasil fragilizou a sua democracia. Mas, mesmo há quatro décadas da redemocratização o país NUNCA foi uma democracia consolidada (se há necessidade de se colocar o adjetivo após o termo democracia). O Brasil sempre foi classificado como uma democracia falha, o que podemos defini-lo como sendo uma Semidemocracia: um conceito de hibridismo institucional no qual o regime apresenta características de uma democracia eleitoral institucionalizada minimamente, mas com falhas sequenciais em instituições do estado democrático de direito e no controle dos militares e de atores armados que põem em xeque a democracia enquanto regime político (NÓBREGA JR., 2010; MAINWARING e PÉREZ-LIÑÁN, 2023).
Dito isto, temos a convicção que a falta de uma gerência adequada da governança criminal (controle das taxas de homicídios, investigação criminal, sistema de justiça criminal com accountability) leva a potência do crime organizado num ambiente onde o custo de transação é baixo para a prática do crime (NORTH, 2018; BECKER, 1968).
A governança criminal como fator de qualidade democrática ainda não entrou na agenda dos principais tomadores de decisão do país. Há uma visão equivocada do crime e do criminoso permeado por uma teoria que não contribui para o bom gerenciamento da governança criminal como fator de qualidade democrática: a criminologia crítica.
Esta teoria tem em sua base uma visão romântica da sociedade capitalista e relativiza o crime e o criminoso os vendo muito mais como atores sociais de “resistência” aos exploradores burgueses do que o que vale mesmo: que é a visão liberal na qual o crime deve ser punido de forma adequada para o fortalecimento e aumento do custo de transação criminal.
Enquanto atores políticos que bebem em Foucault e Marx para entender o crime forem aqueles responsáveis pela condução da governança criminal e da segurança pública no Brasil, dificilmente consolidaremos a democracia em nossas plagas porque democracia é um regime político que, numa perspectiva mininalista e procedimental, deve ir além do critério eleitoral, focando nos direitos de primeira e segunda gerações e na capacidade do estado em implementar o monopólio da força e da violência legal como mecanismos de freio à tirania do crime organizado e do desorganizado também.
Para isso, temos que reconstituir o conceito de criminalidade e de democracia ambos conectados, superando a criminologia crítica e a teoria submínima da democracia, inserindo na definição de democracia o controle do crime e da violência. Sem romantismos.
Referências
BECKER, G. Crime and punishment: an economic approach. Journal of Political Economy, v. 76, n. 2, p. 169-217, 1968.
CORPORACIÓN LATINOBARÓMETRO. Informe 2024. La Democracia Resiliente. www.latinobarometro.org
CORRALES, J.; FREEMAN, W. “Como o crime organizado ameaça a América Latina”. Journal of Democracy em Português. Volume 35, Número 4 Outubro 2024
MAINWARING, Scott et al. “Classificando regimes políticos na América Latina, 1945-1999”. Dados, v. 44, n 4. Rio de Janeiro, 2001.
MAINWARING, S.; PÉREZ-LIÑÁN, A. “Por que as democracias da América Latina estão estagnadas”. Journal of Democracy em português. Volume 12, Número 1, São Paulo, Junho de 2023
NÓBREGA, José Mária. “Violência, Democracia e Justiça Criminal em cinco países da América do Sul (2014-2020)”. Direito, Processo e Cidadania. Recife, v. 3, n.1, p.1-12, jan/abr., 2024. DOI: ttps://doi.org/10.25247/2764- 8907.2024.v3n1.p1-12
NÓBREGA, José Maria. “DEMOCRACIA E JUSTIÇA CRIMINAL: O SEU ALTO NÍVEL DE ASSOCIAÇÃO”. Direito, Processo e Cidadania. Recife, v. 1, n. 2, p. 145-166, maio/ago., 2022
NÓBREGA JR., J.M.P da. “Investigação Criminal, Democracia e Violência na América Latina”. BOLETIM IBCCRIM - ANO 30 - N.º 354 - MAIO DE 2022 - ISSN 1676-3661
NÓBREGA JR., J.M.P. da. “A Semidemocracia brasileira: autoritarismo ou democracia?” Sociologias, Porto Alegre, ano 12, no 23, jan./abr. 2010, p. 74-141
NORTH, D.C. Instituições, Mudança Institucional e Desempenho Econômico. Editora Três Estrelas. São Paulo, 2018.
SARTORI, G. Parties and party systems: a framework for analysis. New York: Cambridg University Press. 1976.
SCHUMPETER, J. Capitalismo, Socialismo e Democracia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 295-376, 1984.
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