O ÍNDICE DE INVESTIGAÇÃO CRIMINAL E A DEMOCRACIA NO BRASIL
Uma análise com base nos indicadores estatísticos
JOSÉ MARIA NÓBREGA - Doutor em Ciência Política (UFPE)
Um dos grandes obstáculos ao controle da violência e da criminalidade organizada no Brasil é a sua baixa efetividade institucional. O país demonstra baixa resiliência, ou seja, baixa capacidade estatal para desmantelar o crime organizado (https://josemarianobrega.blogspot.com/2024/09/crime-organizado-corrupcao-e.html). Um dos aspectos dessa baixa capacidade é o nível da justiça criminal brasileira. Nesta pequena análise irei analisar os indicadores de Investigação Criminal (Índice de Investigação Criminal - IIC) do projeto World Justice Project (2023) em seu fator 8 de Estado de Direito do Rule of Law Index (2024) e sua correlação estatística bivariada com os índices de democracia liberal do Democracy Index (2023), da Freedom House (2024) e do V-dem (2024). O intuito é avaliar o nível de associação bivariada entre esses fatores para testar a hipótese na qual maiores níveis de investigação criminal melhoram a qualidade das democracias.
O IIC avalia o sistema de justiça criminal de um país em seu sistema de investigação criminal. Nele se mensura a capacidade das instituições do aparato de segurança pública e jurídica em acusar e prender criminosos. A mensuração é feita num fator entre 0 e 1 (aqui parametrizado entre 0 e 10) em sua capacidade institucional das polícias, dos investigadores e promotores em suas efetividades. Nela é averiguado se essas instituições possuem recursos adequados, se estão livres da corrupção e se desempenham as suas funções com competência (NÓBREGA JR., 2022: 12).
O crime organizado é uma mazela social a aflige o Brasil há várias décadas e vem se tornando algo insuportável para à sociedade. Vem ameaçando a democracia no continente latino-americano e é um dos maiores desafios aos governos da região (CORRALES; FREEMAN, 2024). A estagnação das democracias tem, como uma das razões de sua deterioração na América Latina, a presença de organizações criminosas que demandam comportamento, violando direitos dos cidadãos, em vários territórios do continente, com grande relevo no Brasil (MAINWARING; PÉREZ-LIÑÁN, 2023). O Primeiro Comando da Capital (PCC) se tornou uma grande organização criminosa transnacional, cooptando atores do Estado e ditando regras que têm mais força que as leis formais do Estado brasileiro nas regiões as quais dominam (FELTRAN ET AL, 2023).
O Brasil está entre os países que apresentam baixa capacidade estatal em relação inversa com a alta criminalidade organizada (https://josemarianobrega.blogspot.com/2024/09/crime-organizado-corrupcao-e.html) os dados demonstram isso e está colocando em risco a estabilidade democrática. Como bem afirma Corrales e Freeman (2024: 149):
“Se as democracias da América Latina não conseguirem desenvolver meios de conter o poder do crime organizado, elas serão corroídas de várias maneiras: grupos criminosos com influência sobre o território intimidarão alguns candidatos e protegerão outros; autoridades civis frustradas se sentirão tentadas a dar muito poder aos militares; presidentes antiliberais usarão políticas duras contra o crime que corroem as liberdades civis e a separação constitucional de poderes; instituições estatais continuarão a funcionar mal sob a influência corruptora e distorcida do crime organizado”.
Com isso, fortalecer as instituições do Estado de Direito se mostra como algo fundamental para o Brasil arrefecer o poderio do crime organizado e, como consequência, reduzir a violência e garantir os direitos dos cidadãos, sobretudo os dos moradores das zonas dominadas pelos criminosos, as comunidades mais carentes do país, o que fortalece a democracia.
Esse fortalecimento institucional do Estado de Direito deve começar com o investimento pesado do Estado em seu sistema de justiça criminal e, por sua vez, da capacidade investigadora do crime. Sabemos que muito dessa incapacidade investigatória está na cooptação de atores policiais e demais atores institucionais das instituições de segurança e de justiça para a rede criminosa. Daí ser o índice de investigação criminal uma ótima ferramenta de avaliação das políticas públicas de controle da criminalidade que precisa ser levada em conta na gestão da segurança pública brasileira. O IIC do Brasil está abaixo da média da América Latina, o que é muito preocupante (NÓBREGA JR., 2022).
A democracia, como dito, termina por se enfraquecer com o crescimento da criminalidade. A violência, inclusive a violência política, é o principal indicador de que as coisas estão fora do lugar. Os homicídios no Brasil estão descontrolados há anos e ceifam, em sua maioria, jovens pobres, muitos deles recrutados para a atividade criminosa. Portanto, mensusar as democracias e correlacioná-las em seus indicadores de Estado de Direito com objetivo de medir a sua capacidade em controlar a criminalidade é fator importante para o sucesso, avanço e consolidação da democracia.
A democracia liberal é medida por várias plataformas de mensuração e classificação de regimes políticos há décadas (MAINWARING ET AL, 2001). Em síntese, a democracia liberal enfatiza a importância de proteger os direitos individuais e das minorias contra a tirania do Estado e a tirania da maioria (e das minorias dos grupos criminosos violentos). Na qual as liberdades civis são protegidas constitucionalmente, em que o Estado de Direito é forte, o poder judicial é independente e os mecanismos de controle e equilíbrio entre os poderes são fortes. Por fim, o nível da qualidade das eleições democráticas (V-dem, 2024).
Vimos que o conceito de democracia liberal não é nada trivial e compreende o controle da criminalidade violenta como um fator importante para as garantias institucionais das liberdades liberais clássicas.
Irei agora medir, em uma série temporal que vai de 2012 a 2023, os níveis de correlação estatística entre o IIC e os dados dos indicadores de democracia liberal das três plataformas de mensuração e classificação de regimes políticos mais conhecidas: Democracy Index, Freedom House e V-dem.
Os dados da tabela 1 apontam para deterioração da democracia e do indicador de investigação criminal em anos consecutivos. A média da investigação criminal foi de 3,32, com retração na variação percentual de -36,73%, caindo de 4,90 no indicador de 2012 para 3,10 em 2023. O pior ano foi 2014 com o indicador de 2,20. O indicador de democracia do Democracy Index retraiu-se em -6,18% na série histórica. No comparativo com as outras duas plataformas de mensuração, o índice se mostrou mais estável, com a média de 6,95 no período. A queda de 7,12 em 2012 para 6,68 em 2023 é um sinal importante de preocupação com as instituições da democracia liberal.
O indicador da Freedom House foi mais alvissareiro para o país na série histórica, apesar do recuo de -11,11%. Em 2012 o indicador foi de democracia consolidada, com 8,10 no medidor (entre 0 e 10, quanto maior, melhor a qualidade das liberdades democráticas). No entanto, o último ano da série demonstrou pleno desgaste das liberdades, com o índice de 7,20.
Por fim, a plataforma do V-dem demonstrou também desgaste da democracia liberal no Brasil, caindo de 7,80 em 2012 para 6,90 em 2023, uma queda de -11,54%. Destaca-se o crescimento entre 2022 e 2023 de impressionantes 27,7% quando, no período de 2014 até 2022, o processo de desgaste é bem acentuado, com recuo no indicador de -30,7%.
Por certo, temos que investigar melhor a metodologia adotada por essas plataformas, os possíveis vieses que nelas devem existir. Sabemos que o V-dem é um dispositivo de avaliação que fica ao encargo de especialistas distribuídos pelo Globo e também sabemos que muitos desses especialistas têm visões de mundo das mais diversas, o que pode influenciar em suas avaliações. As três plataformas são metodologicamente formatadas a partir de surveys e não levam em conta a violência resultado das disputas entre organizações criminosas rivais. A literatura contemporânea da democracia já demonstra, há duas décadas pelo o menos, a necessidade de avaliar as condições de controle da criminalidade violenta como um fator de Estado de Direito.
Na modelagem estatística acima efetuada na tabela 2, temos as correlações bivariadas entre as variáveis do estudo. Foram correlacionadas as matrizes dos dados das séries históricas entre 2012 e 2023 em relação ao IIC e os resultados demonstraram que a correlação entre investigação criminal e o índice médio de democracia do Democracy Index foi de R = 0,147, ou seja, uma baixa correlação, muito explicado pela maior estabilidade (menor declínio) dos dados do Democracy Index, mas a correlação apresentou o sinal esperado (-, - = +). Já as correlações efetuadas com as outras plataformas, a Freedom House e o V-dem, foram respectivamente: R = 0,405; R = 0,467. Com o V-dem tendo maior impacto da variável dependente (IIC). As correlações também apresentaram o sinal esperado e foram moderadamente associadas.
O gráfico acima demonstra a evolução (ou involução) dos dados no período, com incrível semelhança a dinâmica dos dados (o alinhamento dos indicadores). Isso demonstra estatisticamente a necessidade de melhoria das instituições ligadas à investigação criminal no Brasil para uma melhor qualidade da democracia liberal. Não há liberdades civis e políticas plenas sem Estado de Direito. Não há Estado de Direito usável pelos cidadãos sem controle da criminalidade violenta. Portanto, sem garantias as liberdades liberais clássicas o que temos no máximo são regimes com eleições regulares, mas que não garantem democracias plenas, liberalizadas, com crises constantes e ameaças de golpes violentos as suas instituições.
REFERÊNCIAS
CORRALES, J.; FREEMAN, W. “Como o crime organizado ameaça a América Latina”. Journal of Democracy, Volume 35, Número 4, Outubro de 2024, pp. 149-161 (Artigo)
ECONOMIST INTELLIGENCE UNIT. Democracy Index 2023. Age of conflict
FELTRAN, Gabriel; PINHO, Isabela Vianna; LUCIO, Lucia Bird Ruiz-Benitez de. Ligações Atlânticas. O PCC e o tráfico de cocaína entre o Brasil e a África Ocidental. Global Initiative Against Transnational Organized Crime. 2023.
FREEDOM HOUSE. Freedom in the World, 2024. The Mounting Damage of Flawed Elections and Armed Conflict. Highlights from Freedom House’s annual report on political rights and civil liberties.
MAINWARING, S.; BRINKS, D.; LIÑAN, A. P. (2001). “Classificando Regimes Políticos na América Latina – 1945-1999”. Dados – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 44. n. 4, p. 645-687, 2001.
NÓBREGA JR., J. M. P. da. “Investigação Criminal, Democracia e Violência na América Latina”. BOLETIM IBCCRIM - ANO 30 - N.º 354 - MAIO DE 2022 - ISSN 1676-3661
V-DEM. RELATÓRIO DA DEMOCRACIA 2024. A Democracia a Ganhar e a Perder nas Urnas.
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