Crime organizado, corrupção e a inefetividade da lei no Brasil

 

Crime organizado, corrupção e a inefetividade da lei no Brasil



 José Maria Nóbrega - doutor em ciência política UFPE

Entendemos crime organizado como um conceito que pode ser definido minimamente com os seguintes critérios: 1. grupo composto por pessoas conduzido hierarquicamente; 2. uso frequente de violência física e/ou psicológica; 3. planejamento estratégico com base em tomadas de decisão racionalizadas e otimizadas; 4. com o fim de lucrar em atividades ilícitas; 5. com a presença constante de atores estatais sejam eles funcionários públicos ou políticos.

A corrupção é o desvio do funcionário público em relação a sua função, é a venda de seu serviço de forma ilegal, e em alguns casos até criminosa, para um terceiro com o fito de lucrar financeiramente com essa atividade. A corrupção é uma força motriz do crime organizado.

A inefetividade da lei ocorre com a baixa performance institucional da capacidade estatal em seu componente legal e coercitivo. O “Estado Legal”, segundo O´Donnell (1998), é a parte do Estado personificada em seu sistema legal (sistema de leis, regras e organizações) que penetra e estrutura a sociedade, fornecendo um elemento básico de previsibilidade e de estabilidade às relações sociais. No Brasil, esse sistema legal é fraco, de baixa eficácia, imprevisível e inseguro.

Nosso argumento aqui é que há uma alta correlação entre crime organizado, níveis de corrupção e estado de direito. Quanto maior é a qualidade das instituições que regulam o crime organizado, maior é a qualidade das democracias e menor é a corrupção. Metodologicamente, irei explicar esse argumento com o uso de dados descritivos do Global Organized Crime Index (2023), uma iniciativa do Global Initiative Against Transnacional Organized Crime. Uma ferramenta multidimensional que avalia o nível de criminalidade e resiliência ao crime organizado para 193 países ao longo de três pilares principais – mercados criminosos, atores criminosos e resiliência. Resiliência é a capacidade estatal de desmantelar o crime organizado.

 



Nesta figura temos os indicadores do índice no qual temos desde a presença de atores estatais no crime organizado, tráfico humano, passando por tráfico de drogas e atividades financeiras criminosas. Quanto maior o indicador, ou seja, maior é o topo da pirâmide, maior é o índice de crime organizado.


Na figura acima temos os indicadores de resiliência que podem ser usados como fator empírico para mensurar corrupção e inefetividade da lei. Nesse caso também quanto maior o índice maior é o nível de resiliência. Quanto maior forem as teclas em azul e menor for a pirâmide maior será a correlação entre resiliência e menor corrupção e inefetividade da lei, gerando maior accountability. Os fatores do dado passam por accountability do Estado e de seus atores, força da lei, prevenção, integridade territorial e a não presença de atores estatais no crime. Espera-se que quanto maior for o nível da resiliência, menor será o nível do crime organizado e da corrupção.

 

Nas figuras acima temos os escores. Quanto maior o número, maior é o indicador de crime organizado; valendo o mesmo para o de resiliência.

 

Na figura do gráfico acima temos o coeficiene de correlação entre os 193 países analisados pelo Global Organized Crime (2023), com o dado de -0,44 no qual a maior resilência está inversamente relacionada ao crime organizado. Os países da Europa Ocidental e da América do Norte são os mais resilientes e menos suscetíveis à criminalidade organizada. Esses países são classificados em sua maior parte em democracias cheias pelo Democracy Index (2022) que foi utilizado como variável de tipo de regime político pelo Global Organized Crime (2023).

Na tabela acima temos os países de maior índice de crime organizado e de menor resiliência dos 193. Um total de 63 países dentre os quais o Brasil e a Venezuela. Vejamos os seus dados separadamente.


 

O Brasil apresentou um dos dados mais altos de crime organizado dos 193 países. O dado médio de 6,77 com alguns destaques: 9,00 no dado de tráfico de cocaína, 8,50 no tráfico de cannabis, 8,00 em grupos similares a máfias e estrondosos 8,50 na presença de atores estatais envolvidos na criminalidade. O que preenche com significativa expressão o conceito de  crime organizado. No Brasil, o crime está vencendo o Estado e este está submetido ao crime. Isto pode ser comprovado pelos dados de resiliência. Vejamos: a média do escore foi de 4,92. Baixa capacidade estatal e forte inefetividade da lei. O indicador de governança e de liderança política foi de 3,00, o que comprova os meus argumentos na mídia impressa de Pernambuco há décadas.  A corrupção do Estado comprovada com o indicador de 8,50 da presença de atores estatais no mundo do crime em alta correlação inversa com a capacidade estatal para combater o crime organizado está, fundamentalmente, no indicador 3,00 do sistema de justiça e de detenção, no de 4,50 na accountability institucional somado a 4,50 da força da lei.

 


 

Os dados da Venezuela são expressivos. Não à toa passa pelo que está passando. O índice de resiliência, ou a sua capacidade para lhe dar com o crime organizado, é de ridículos 1,88. A lei pouco vale naquele país com escore de 1,50, com praticamente falência do estado de direito no país. O indicador de presença de atores estatais na criminalidade é de 9,00 com praticamente o Estado servindo ao crime organizado. Não é retórica a afirmação na qual a Venezuela é um narco-estado. Apesar dos péssimos indicadores de resiliência, o dado médio de crime organizado é semelhante ao do Brasil tão forte é a corrupção em nossas plagas. 

 


Como dito, a correlação entre controle da criminalidade com bons indicadores de resiliência com a qualidade da democracia é forte. O Chile é um dos poucos países classificados como regime político de democracia consolidada na América Latina. O seu indicador de crime organizado é de 5,18 e o de resiliência é de 6,17. Os dados de presença de atores estatais participando do crime organizado são bem menores que os do Brasil e da Venezuela e sua lei nacional é mais forte. No entanto, há gargalos a serem preenchidos como a força da lei e a integridade territorial. 

 


Para ilustrar bem a nossa comparação e o nosso argumento teórico, trouxemos a Finlândia uma das democracias mais sólidas do mundo. Os dados são eloquentes: 2,98 de crime organizado com 8,63 de resiliência. A diferença no gráfico é visível e pode ser comparado com os outros países como pano de fundo do argumento teórico aqui empreendido. 

 


Os Estados Unidos são um exemplo de país com alta capacidade estatal mas de alta criminalidade para o seu rigor institucional. Isso se dá por ser o maior consumidor de drogas do mundo. O dado de crime organizado foi de 5,67 e o de resiliência foi de 7,13 sendo um país com grande participação na cooperação internacional.

Um dos fatores que urge controlar é a presença de atores estatais na engrenagem do crime organizado. A corrupção se fortalece e com ela o crime organizado.

 


O coeficiente de correlação estatística entre resiliência e atores estatais integrados ao crime organizado é alta (-0,79) e está associado ao dado do Brasil com indicador de corrupção de 8,50 (o da Finlândia é de 1,50; Estados Unidos 4,50; Chile, 5,50; Venezuela, 9,00).

 As instituições importam!

Para O´Donnell (1998), a maioria dos países da América Latina não podem ser classificados como democráticos. Para Mainwaring, Brinks e Liñán (2001) melhor seria classificá-los como semidemocráticos. Nesses países podem até existir eleições minimamente institucionalizadas, mas prevalecem estados fracos que não garantem direitos e onde a criminalidade é quem comanda.

Para O´Donnell (1998), salvo raras exceções, a exemplo do Chile (aqui abordado empiricamente), do Uruguai e da Costa Rica, os problemas institucionais de baixa capacidade estatal para tarefas simples, como a segurança pública e jurídica, pioraram na América Latina.

A certeza da impunidade e o baixo accountability horizontal alimentam e é alimentado pela corrupção e, no Brasil, isto é um fato claro. A situação atual no Brasil é de que o crime venceu e está dentro das instituições demandando comportamento de seus atores (NORTH, 2018).

Para O´Donnell (1998:52), embora haja variações de caso a caso, muitas das poliarquias na América Latina e em outras regiões, exibem numerosos pontos de ruptura nos circuitos legais. Na medida em que isso seja verdade, temos de supor que nesses casos o princípio da lei tem, se tanto, existência apenas intermitente e parcial. O que podemos comprovar esse seu argumento aqui com dados.

O Brasil não tem um estado democrático de direito usável. Existem rudimentos dele na Constituição, mas na realidade empírica as instituições responsáveis pelo controle do crime organizado no Brasil estão falidas. Não conseguem funcionar. São disruptivas.

O futuro é incerto e, pelo que nos faz transparecer, não há vontade política - nem da direita, nem da esquerda - em superar esse danoso quadro institucional. Cabe a nós, sociedade civil organizada, intelectuais, pensadores dos mais diversos campos do saber e ideológicos, seres pensantes, pressionar os tomadores de decisão para que este tema seja colocado na agenda principal do país.

Referências:

Economist Intelligence Unit (2022). Democracy Index. Frontline democracy and the battle for Ukraine.

Global Initiative Against Transnational Organized Crime (2023). Global Organized Crime.

Mainwaring, S; Brinks, D.; Pérez-Liñán, A. (2001). Classificando regimes políticos na América Latina. Dados Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, v. 44. n. 4, p.645-687, 2001.

North, D. (2018), Instituições, Mudança Institucional e Desempenho Econômico. São Paulo. Ed. Três Estrelas.

O´DONNELL, G. Poliarquias e a (In)efetividade da Lei na América Latina: uma conclusão parcial. In: MÉNDEZ, Juan E.; O´DONNELL, Guillermo; PINHEIRO, Paulo Sérgio (Orgs.). Democracia, Violência e Injustiça. O Não-Estado de Direito na América Latina. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p.337-373.

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