Violência, Democracia e Justiça Criminal

 

José Maria Nóbrega - doutor em Ciência Política pela UFPE

 

Com os assassinatos de políticos ocorridos no Equador, de responsabilidade do crime organizado do tráfico de drogas, a imprensa passou a dar grande relevo à violência como obstáculo as democracias na América Latina. Mas, por que só com esses atos extremos e explícitos a mando do crime é que a grande imprensa começou a dar destaque à relação entre violência, criminalidade e instabilidade dos regimes democráticos na região?

 

Desde a terceira onda de democratização no contexto latino-americano que a violência é descontrolada e alimentada pela criminalidade. As Américas são os continentes mais violentos do mundo. A média mundial das taxas de homicídios por cada grupo de cem mil habitantes é de 6.1/100 mil, nas Américas é de 17.2/100 mil, a taxa da África é de 13/100 mil, a da Ásia é de 2,3/100 mil, a da Europa é de 3/100 mil e da Oceania é de 2,8/100 mil. Quando desagregamos as Américas, a América Latina aparece com taxa por cem mil de 24, com estados, como a Venezuela, por exemplo, com taxas de homicídios superiores aos 50/100 mil.

 

A América Latina concentra, em média, 40% da violência homicida mundial. Produz a maior parte das drogas consumidas no mundo, chegando, segundo algumas fontes, a produzir mais de 90% da cocaína consumida no mundo. Não à toa, concentra as maiores quadrilhas de traficantes de drogas do mundo.

 

O lucro obtido com o tráfico de drogas é extraordinário, chegando, segundo algumas fontes, a trilhões de dólares. Esse lucro termina corrompendo facilmente os sistemas políticos das frágeis democracias latino-americanas, caracterizadas que são por graves falhas institucionais, o que potencializa a corrupção e a criminalidade. Impunidade e corrupção são as marcas dos regimes políticos latino-americanos, sobretudo, os países mais fracos economicamente.

 

A violência não é uma ameaça a democracia, é um sinal de que a democracia não está consolidada. Ou seja, que o regime não está em sua plenitude. O Brasil, por exemplo, nunca em seus mais de trinta anos de redemocratização, foi classificado pelos órgãos internacionais de mensuração e classificação de regimes políticos, como sendo uma democracia robusta. Sempre foi classificado numa zona intermediária semidemocrática. País que abriga uma das maiores facções criminosas do continente, o Primeiro Comando da Capital (PCC) que opera em vários países latino-americanos.

 

O Estado de Direito democrático está na base da fragilidade das democracias latino-americanas e explica boa parte do descontrole da criminalidade violenta da região. As instituições pouco responsivas aos interesses dos cidadãos pontencializam a impunidade e a falta de controle da corrupção e da criminalidade violenta.

 

Seguindo esse raciocínio, temos no sistema de justiça criminal o conjunto de instituições responsáveis pela principal característica do Estado democrático de direito: a sua capacidade de monopolizar a força/coerção (violência legal).

 

O conceito de justiça criminal é fundamental na estrutura do Estado de Direito democrático. A justiça criminal é composta por instituições responsáveis pela aplicação da lei, o que inclui: 1. um sistema de investigação criminal efetivo e eficaz; 2. um sistema efetivo de acusação e prisão de criminosos; 3. um sistema de correção eficiente e bem administrado; 4. uma justiça criminal independente e imparcial; 5. um sistema de justiça criminal livre da corrupção; 6. um sistema de justiça criminal livre da influência de governos; 7. com um processo de garantia aos direitos dos entes acusados.

 

O Projeto ‘World Justice Project’, em seu Rule of Law Index (Índice de Estado de Direito), inclui o sistema de justiça criminal como um dos indicadores da qualidade do Estado de direito. Esse indicador é medido entre zero e um, quanto maior, próximo de um, maior é o fator de sistema de justiça criminal. Maior é a capacidade do Estado de Direito em controlar o crime e a violência.

 

Em pesquisa publicada na Revista “Direito, Processo e Cidadania” da Pós-Graduação em Direito da Unicap (PE) [NÓBREGA, J.M. Democracia e Justiça Criminal: o seu alto nível de associação. Direito, Processo e Cidadania, Recife, v.1, n.2, pp-145-166, maio/ago. 2022], demonstramos a alta associação entre o índice de justiça criminal como fator de Estado de direito e a qualidade dos regimes democráticos em dois conjuntos de países. Comparamos dez democracias ocidentais europeias com dez democracias latino-americanas.


Na tabela acima temos as dez democracias europeias. A média das taxas de homicídios dolosos retiradas do Homicide Country (ONU) foi de 0,5/100 mil. A média de democracia - numa medida retirada do Democracy Index da Revista The Economist, que classifica as democracias cheias, ou consolidadas, com score médio acima dos 7,99 - dos países em destaque na tabela 1, foi de 8,65, com a maioria dos países sendo democracias consolidadas. A média do índice de Estado de Direito, tendo o fator justiça criminal como proxy para o monopólio da força e da violência legal, foi de 0,765 (entre 0 e 1).

 

Na tabela 2, dos países latino-americanos, a média das taxas de violência foi de 15,4/100 mil, o que caracteriza a hiperdimensão da violência ligada ao crime de tráfico de drogas na região. A média de Estado de Direito do fator justiça criminal foi de 0,4 - com destaque ao Brasil que apresentou indicador menor que a taxa média da América Latina. E a média de regime democrático foi de 6,9, portanto regimes de democracias intermediárias e/ou de baixa qualidade.

Na tabela 3, correlacionamos os dois conjuntos de dados das democracias europeias e das democracias latino-americanas em seus indicadores de democracia e de justiça criminal (indicador de Estado de Direito). Ambas correlações mostraram associação alta (R=0,826 nas democracias europeias e R=0,946 nas democracias latino-americanas) entre os dois indicadores, ou seja, quanto maior o índice de sistema de justiça criminal, maior o indicador de democracia. Destacamos a maior correlação entre os países latino-americanos, o que sugere o potencial do sistema de justiça criminal para a consolidação da democracia na América Latina.

 

Como o Estado de Direito é a base da democracia, entendemos ser a consolidação de instituições do sistema de justiça criminal como aspecto fundamental para o robustecimento da democracia, já que isso controla a criminalidade violenta, como pode ser visto na diferença expressiva dos dados de violência no comparativo dos dois grupos de países, bem como mantém os criminosos potenciais sob controle do Estado. Sem esse controle, os criminosos se sentem motivados a evoluir na atividade criminosa até chegar no sistema político, o que podemos ver com os assassinatos recentes no Equador. Nenhum país dentro dessa realidade de impunidade gerada pela incapacidade do Estado de Direito em seu fator de justiça criminal estará isento de violências que ceifem vidas de políticos e de cidadãos comuns, o que leva a democracia como regime político ao descrédito e possível esfacelamento.

 

Inferindo ser o controle da criminalidade violenta um vetor fundamental para o sucesso das democracias em qualquer região ou cultura.



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