Existe democracia relativa?


As declarações do Presidente Lula sobre “democracia relativa” quando tentou justificar algum requisito democrático na Venezuela, reacendeu um debate teórico-conceitual na grande mídia sobre o que é uma democracia na contemporaneidade. Reacendeu também o vazio conceitual do que, minimamente, um país precisa ter para ser classificado como uma democracia. O debate é antigo e difícil, já que reporta a conceitos históricos bastante remotos, mas, na Teoria Contemporânea da Democracia, há critérios mínimos a serem seguidos e a relativização não existe. Ou um regime é classificado como democrático, como semidemocrático, como semiautoritário ou autoritário.

Em debate na Jovem Pan, o jurista Ives Gandra Martins afirmou que o Brasil seria uma semidemocracia. Não tem como discordar dele. Mas, por que só agora eu vejo na imprensa o uso desse conceito? Faz vinte anos que o Brasil foi classificado como semidemocrático, ou seja, um regime híbrido entre o autoritarismo e a democracia.

Bobbio já tinha resolvido muita coisa desse debate quando afirmou que a Democracia Contemporânea não tinha quase nada do conceito desenhado na antiguidade na qual surgiu a Democracia Clássica. A Democracia Contemporânea seria o encontro do sufrágio universal, ou quase universal, com o Estado de Direito Liberal, ou seja, com os direitos civis e políticos individuais dos cidadãos de uma dada Nação.

Giovani Sartori também demonstrou que a Democracia Empírica é aquela que existe na realidade e deve ser testada empiricamente. Já Larry Diamond cunhou a expressão “Democracia Iliberal” para os regimes políticos híbridos não completamente democratizados por existir neles amplas violações e/ou omissões ao aparato dos direitos civis e políticos.

No entanto, foi Scott Mainwaring que superou o viés dicotômico dos teóricos schumpeterianos. Na visão de Joseph Schumpeter a democracia é um método de escolha de governantes no qual há eleições minimamente institucionalizadas. Quando não há eleições com essas características, o que há é autoritarismo, não há espaço para zonas intermediárias (o que pode levar desavisados como Lula a dizer que a democracia é relativa).

Na verdade, Mainwaring vai dizer que regimes políticos que promovem eleições não necessariamente são democráticos, ficando numa zona intermediária entre o autoritarismo e a democracia quando não preenchem requisitos mínimos da democracia. Para ele, Schumpeter é subminimalista, pois os critérios elencados por este autor não seriam suficientes para a avaliação de regimes políticos a contento.

Mainwaring classificou os países da América Latina entre três categorias: Democracias, Semidemocracias e Autoritarismos. A maioria dos países da região caíram na zona intermediária semidemocrática que seria definida conforme critérios objetivos. Um regime para ser classificado como democrático por Mainwaring teria que promover os seguintes procedimentos: 1. eleições livres, limpas, pluripartiárias e periódicas, com direito a alternância para os poderes legislativo e executivo; 2. Sufrágio universal para a população adulta; 3. garantias aos direitos civis e políticos dos cidadãos, sobretudo o direito a uma oposição livre; 4. controle efetivo sobre as forças armadas.

Então, este dispositivo conceitual já poderia ter influenciado o atual mandatário do país. A Venezuela preencheria quantos desses requisitos?

Pelas principais plataformas de mensuração de regimes políticos, nenhum!

Em artigo recentemente publicado (NÓBREGA, J. M. “Classificação de Regimes Políticos na América Latina: um estudo comparado das principais plataformas de mensuração”. Revista Estudos Políticos. V.13, n. 26, 2022. p. 2-21. https://periodicos.uff.br/revista_estudos_politicos/article/view/50836), publicamos resultados de pesquisa sobre a mensuração e classificação de regimes políticos na América Latina, tendo como base da análise as principais plataformas de mensuração e classificação de regimes políticos comparados: o Democracy Index (DI), o Varieties of Democracy Institute (V-Dem) e a Freedom House (FH). Os resultados demonstraram que, no contexto da América Latina, as três plataformas estão altamente correlacionadas, ou seja, os países foram mensurados e classificados de forma muito parecida, com a maioria dos países ficando numa zona intermediária.

A condição de realizar eleições competitivas livres e justas e de satisfazer os aspectos que estão vinculados a liberdade política é, para tanto, claramente a condição sine qua non de todas as definições de democracia, não há relativismo.

O Democracy Index é baseado em cinco categorias: 1. processo eleitoral e pluralismo; 2. liberdades civis; 3. funcionamento do governo; 4. participação política; e 5. cultura política. As cinco categorias estão ligadas e constituem um todo conceitual coerente.

No V-Dem, foi desenvolvida uma escala com cinco princípios ou variáveis: eleições, princípios liberais, participação, igualdade perante as leis e deliberação. Estas cinco variáveis são medidas particularmente e numa média que varia entre 0 (não-democracia) e 1 (democracia plena), ou seja, uma escala ordinal. Os países situados na zona intermediária são classificados como semidemocráticos. Esta foi a medida usada por Ives Gandra para afirmar que o Brasil seria semidemocrático.

Já na Freedom House, cada país e território recebeu pontuações entre 0 e 4 pontos em uma série de 25 indicadores, para uma pontuação agregada que vai até 100. Essas pontuações são usadas para definir duas classificações numéricas para direitos políticos e liberdades civis, com uma classificação de 1 representando as condições de estados mais livres e 7 os considerados menos livres. Os direitos políticos e as classificações de liberdades civis de um país ou território determinam, então, a classificação deles em Livre, Parcialmente Livre ou Não Livre. Ou seja, entre democráticos, semidemocráticos e não democráticos.

Depois de parametrizadas as plataformas, as correlações estatísticas demonstraram alto nível de associação entre elas. Os resultados dessa operação demonstraram que Uruguai, Costa Rica e Chile foram os únicos países, de vinte e quatro analisados, que foram classificados como plenamente democráticos, com o Brasil ficando numa posição intermediária semidemocrática e Cuba, Venezuela e o Haiti com as piores classificações, estando entre os regimes classificados como autoritários.

Acho que agora fica mais claro que não existe democracia relativa, que este conceito é desprovido de cientificidade, por sua vez de racionalidade, e que o Presidente Lula precisa ser melhor aconselhado sobre esta temática tão relevante.

 

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