Legibus Solutus
Por José Maria Nóbrega - Doutor em Ciência Política pela UFPE.
Legibus Solutus eram os reis absolutistas no início da modernidade. Eles tinham o poder de polícia, de justiça, de legislar, de administrar etc. Estavam acima das leis. A lei era a vontade do rei por direito divino. As revoluções burguesas destruíram os reinados absolutistas e, com destaque a Guerra Civil Britânica, instalaram os primeiros rudimentos de um regime político no qual a divisão de tarefas entre os poderes tiveram início. No parlamento, o Poder Legislativo; na figura do primeiro ministro, o Poder Executivo; e o Poder Judiciário para julgar a constitucionalidade das leis (tendo como base os direitos civis), os crimes e as mais diversas ilegalidades, inclusive cometidas por agentes do Estado. A figura do Legibus Solutus tinha chegado ao fim na Europa Ocidental, hoje caracterizada por democracias consolidadas.
Bem, não é isso que acontece em alguns regimes híbridos que promovem eleições no mundo contemporâneo, a exemplo do Brasil, mas não consolidam e, algumas de suas elites, nem pretendem consolidar as democracias.
No Brasil, a lacuna no Estado Legal abre espaços para todos os tipos de abusos e violações de direitos e o mais recente, o famigerado “Inquérito das Fake News”, instalado no Supremo Tribunal Federal (STF), é o mais esdrúxulo e fora da lei objeto de tirania e agressão aos direitos civis constitucionais já visto, produzido pela mais alta corte da República.
Para fins de definição, Estado de Direito Democrático é concebido como um aspecto da democracia, o princípio da lei, ou o Estado de Direito.
“Nesse contexto, o Estado de Direito deveria, sim, ser visto como um governo de um Estado democrático em três sentidos. Primeiro, o de que ele preserva as liberdades e garantias políticas da poliarquia. Segundo, o de que preserva os direitos civis de toda a população. E terceiro, no sentido de que estabelece redes de responsabilidade e accountability que impõem que todos os agentes, privados e públicos, inclusive os funcionários dos escalões mais altos do regime, estão sujeitos a controles apropriados, legalmente estabelecidos, da ilegalidade de seus atos. Uma vez que preencha essas três condições, esse Estado é não apenas governado pela lei; é um Estado legal democrático, ou um Estado de Direito democrático” (O´DONNELL, 2000: 352-353).
Seguindo esta definição, o que a mais alta corte do país está fazendo é agressivo aos princípios democráticos do Estado de Direito. A violação ao sistema acusatório e ao rito constitucional viola a própria constituição. Um só agente não pode ser vítima, ator da ação, investigador policial e julgador pois isto o caracteriza como um ser Legibus Solutus, ou seja, está acima de tudo e de todos.
Segundo o rito institucional processual criminal, o inquérito é um documento investigatório produzido pelas polícias. Diante da notícia da possível ocorrência de um crime, a polícia inicia uma investigação criminal para levantar provas de que o crime efetivamente ocorreu. Concluída a investigação, a polícia encaminha o inquérito a um membro do Ministério Público que irá analisar e, se ele entender que existem substâncias incriminatórias, encaminha ao Judiciário para que este julgue (MONTEIRO, 2020: 72). Este deve ser o rito formal legal.
O que ocorre com o inquérito das Fake News sob a tutela do Ministro do STF, Alexandre de Moraes, é totalmente descabido, passa por cima do ritual institucional formal e agride diretamente direitos constituídos. A imparcialidade do juiz, algo que está conectado ao próprio conceito de democracia na qual, como dito por O´Donnell (2000), os agentes públicos, inclusive aqueles dos mais altos escalões da República, estão sujeitos a controles legalmente estabelecidos, a produção deste inquérito fere direitos e a própria democracia. Em nome da “democracia” se pisa nela!
Como o Poder Legislativo está permeado por corruptos e corruptores de todos os níveis, com muitos deles respondendo processos naquela corte, não está havendo o devido freio ao agente público responsável pelo apelidado “Inquérito do Fim do Mundo”. Com a omissão irresponsável do Legislativo, a ditadura da toga está inflamando parte considerável da população e esta está pedindo, através de um artigo resquício da Ditadura Militar, a intervenção das Forças Armadas para resgatar a lei e a ordem no Brasil.
Incrível como a semidemocracia brasileira está retrocedendo sem que se perceba, com o apoio da grande mídia, a um regime de exceção patrocinado pelo STF. Este, agride os direitos básicos de cidadania com a instalação de um sistema inquisitório, e parte da população pede intervenção militar. Ambas ações são anti-democráticas e vai de encontro a todos os princípios da democracia.
Democracia é um regime político que vai muito além das eleições livres e limpas. Necessita de um Estado Legal que dê garantias reais de direitos civis e políticos; controle civil sobre as Forças Armadas, estas têm pouca ou nenhuma prerrogativa política em democracias sólidas, que não é o nosso caso, claramente; e que ninguém esteja acima das leis, que nenhum ator político seja legibus solutus.
Referências bibliográficas:
MONTEIRO, Marcelo R. (2020), “O Inquérito do Fim do Direito. Explicando para o leigo o Inquérito do Fim do Mundo. (In) Inquérito do Fim do Mundo. O apagar das luzes do Direito Brasileiro. Cláudia R. de Morais Piozevan (Org.) Editora E.D.A. Londrina, PR.
O´DONNELL, Guillermo (2000), “Poliarquias e a (in)efetividade da lei na América Latina: uma conclusão parcial”. (In) Democracia, violência e injustiça. O Não-Estado de Direito na América Latina. (orgs.) Juan Méndez/Guillermo O´Donnell/Paulo Sérgio Pinheiro. São Paulo. Ed. Paz e Terra.
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