Rússia dos czares

 


Rússia dos czares

Por José Maria Nóbrega – cientista político e professor universitário

“No século IX, enquanto o império de Carlos Magno se fragmentava para dar lugar àquelas que, mais tarde, se tornariam as modernas nações da França e da Alemanha, tribos eslavas a mais de 1.600 quilômetros a leste dali tinham se fundido numa confederação em torno da cidade de Kiev (agora capital e centro geográfico do Estado da Ucrânia, ainda que percebida de forma quase universal pelos russos como parte inseparável do seu próprio patrimônio). Essa “Terra dos Rus” estava situada na frágil interseção entre civilizações e rotas comerciais. Tendo os vikings ao norte e o império árabe em expansão ao sul, e tribos turcas lançando frequentes ataques desde o leste, a Rússia se encontrava permanentemente às voltas com tentações e medos que se sobrepunham uns aos outros. Situada num ponto oriental demais para ter vivido a experiência do Império Romano (ainda que “tsares” tomassem os “Césares” como seus antepassados políticos e etimológicos), cristã, porém voltada mais para a Igreja Ortodoxa em Constantinopla do que para Roma na sua busca por autoridade espiritual, a Rússia estava próxima o bastante da Europa para compartilhar um vocabulário cultural comum, ainda que eternamente fora de compasso em relação às tendências históricas do continente. A experiência faria da Rússia uma potência singularmente “eurasiana”, estendendo-se por dois continentes sem se sentir à vontade de forma plena em nenhum dos dois” (KISSINGER, Henry. Ordem Mundial. Ed. Objetiva. São Paulo. 2014).

O breve histórico nas palavras de Henry Kissinger, resume bem a história da Rússia: um país imenso, único, misterioso e autoritário. O seu conservadorismo cultural e expansionismo são únicos. Um território vasto, diverso, mas com um fato peculiar em toda a história da nação russa: a força de seus governantes. Desde os czares, passando pelos governos comunistas da antiga União Soviética até o atual mandatário Vladimir Putin.

A atual agressão armada da Rússia sobre a Ucrânia é mais um capítulo da longa história de expansionismo russo que vemos nos valiosos livros de história e de relações internacionais. Prevalece no mundo ainda as relações baseadas em uma balança de poder difícil de se manter em equilíbrio. Ainda mais agora, com líderes ocidentais tão fracos.

Desde 2011, a Rússia é classificada como regime autoritário pelo Democracy Index (2021). No ranking da Europa do Leste ficou na 22ª posição entre 28 países. A Ucrânia foi classificada como um regime híbrido (com algumas características democráticas, mas apresentando desvios autoritários), numa posição mais confortável que a da Rússia, em 17º lugar. A experiência democrática é bastante tímida no leste europeu. Nenhum país da região foi classificado como democracia cheia, ou consolidada. A maioria é classificada como democracia falha ou regime híbrido. Ou seja, há forte tradição autoritária em toda a região.

O século XXI parece querer reviver as piores catástrofes vistas lá entre o início e o meio do século passado. O que o historiador Erik Hobsbawm chamou de “Era da Catástrofe”. A Guerra Fria foi o seu resultado, num cenário bipolar que vigorou até a catástrofe de Chernobyl e a posterior queda do regime soviético.

A Rússia permanece como um grande enigma e que necessita de diplomacia de alto nível para lidar com ela, o que parece não termos no atual cenário internacional. As grandes potências ocidentais em torno da OTAN desprezaram a história da Rússia, desdenharam de seu poder bélico e de seus interesses. Faltou habilidade. Joe Biden não foi o chefe de estado adequado para a tarefa. O mundo ocidental prescinde hoje de um Bismarck ou de um Churchill para entender a sua geopolítica.

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