IMPUNIDADE E DEMOCRACIA
Impunidade e democracia
Por
José Maria Nóbrega – cientista político e professor universitário
A
impunidade é um dos grandes males dos estados modernos. Controlá-la é
fundamental, pois o seu descontrole pode acarretar em violações ao estado de
direito. O mainstream da Ciência
Política conceitua e avalia as democracias sob a perspectiva eleitoral. Ou
seja, a democracia é analisada pelo jogo político eleitoral entre as elites
partidárias em concorrência. Não se enxerga o papel das instituições coercitivas
na segurança do regime político.
Guillermo
O´Donnel definiu democracia como um regime político no qual, além dos critérios
eleitorais, o estado de direito deve ser usável para ampla maioria dos cidadãos
agentes ativos do processo político. Já Scott Mainwaring, Daniel Brinks e
Aníbal Pérez Liñán definiram democracia como um regime que, para o sucesso do método
democrático, depende de instituições políticas e coercitivas responsivas e em
que os militares não sejam legibus solutus.
Nesse
contexto, argumentamos no sentido de que, para que haja Poliarquia, a impunidade
deve ser controlada. Pois a base do funcionamento institucional do estado de direito
– conjunto de instituições responsáveis pelas garantias das liberdades civis e
políticas e controle dos poderes -, depende de instituições coercitivas – polícias,
sistema de justiça, promotorias e sistema carcerário – responsivas.
Dessa
forma, a definição de democracia liberal é tridimensional, ou seja, além das
duas dimensões descritas por Robert Dahl – contestação e inclusão ou sufrágio universal
-, é fundamental o ‘monopólio da força’ das instituições coercitivas fazendo
com o que os atores sociais se mantenham em respeito entre si e entre as regras
do jogo eleitoral e do estado de direito.
Partimos
da hipótese na qual alta impunidade está inversamente associada à qualidade da
democracia. Quanto maior a impunidade, menor o nível de democracia. O sinal
esperado é negativo.
O
indicador de impunidade leva em conta: (a) policial por cem mil habitantes; (b)
magistrados por cem mil habitantes; (c) capacidade prisional; (d) respeito aos
Direitos Humanos; e (e) prisão de homicidas por número total de homicídios
perpetrados. A impunidade assim aparece como a variável dependente desta
análise, é uma variável baseada dado crescente entre 0 (nenhuma impunidade) e
100 (total impunidade).
Para
testarmos a hipótese, foram analisados os cruzamentos dos dados de impunidade
do Global Impunity Index de 2020 (GII-20) com o índice de democracia do Democracy
Index (2020) da Revista The Economist. Foi utilizada a correlação entre os dois
conjuntos de dados (Correlação de Pearson). A nossa amostragem foi de 63 países
classificados em democracias cheias, ou consolidadas (países classificados
entre 8 e 10), democracias falhas ou regimes híbridos (semidemocracias
classificadas entre 7,99 e 4) e os regimes não democráticos, ou autoritários
(classificados com escores médios inferiores a 4).
Tabela 1. Países ranqueados pelos seus níveis de impunidade; indicadores de
democracia; correlação entre as matrizes de dados
países |
impunidade |
democracia |
correl imp v dem |
Eslovênia |
20,26 |
7,54 |
Coef. Correl=-0,514 |
Croácia |
20,46 |
6,5 |
|
Grécia |
24,05 |
7,69 |
|
Bósnia e Herzogovina |
25,31 |
4,84 |
|
Suécia |
25,94 |
9,26 |
|
Noruega |
27,36 |
9,81 |
|
Hungria |
28,34 |
6,56 |
|
Romênia |
28,89 |
6,4 |
|
Holanda |
29,76 |
8,96 |
|
Sérvia |
30,97 |
6,22 |
|
Islândia |
31,03 |
9,37 |
|
Estônia |
31,36 |
7,84 |
|
Bulgária |
31,37 |
6,71 |
|
Montenegro |
31,71 |
5,77 |
|
Albânia |
32,12 |
6,08 |
|
Alemanha |
32,46 |
8,67 |
|
Eslováquia |
32,73 |
6,97 |
|
Finlândia |
32,9 |
9,2 |
|
Bélgica |
32,97 |
7,51 |
|
Portugal |
33,06 |
7,9 |
|
Letônia |
33,14 |
7,24 |
|
Itália |
33,78 |
7,74 |
|
Ucrânia |
33,84 |
5,81 |
|
Espanha |
34,81 |
8,12 |
|
Mongólia |
35,02 |
6,48 |
|
Lituânia |
35,78 |
7,13 |
|
França |
36,06 |
7,99 |
|
Polônia |
37,2 |
6,85 |
|
Áustria |
37,24 |
8,16 |
|
Japão |
37,71 |
8,13 |
|
Coréia do Sul |
37,71 |
8,01 |
|
Suíça |
38,42 |
8,83 |
|
Dinamarca |
38,82 |
9,15 |
|
Costa Rica |
39,51 |
8,16 |
|
EUA |
40,21 |
7,92 |
|
Geórgia |
40,51 |
5,31 |
|
Belarus |
41,17 |
2,59 |
|
Panamá |
42,54 |
7,18 |
|
Moldávia |
44,29 |
5,78 |
|
Singapura |
44,89 |
6,03 |
|
Canadá |
45,66 |
9,24 |
|
Turquia |
46,17 |
4,48 |
|
Bahrein |
46,37 |
2,49 |
|
Rússia |
46,37 |
3,31 |
|
Colômbia |
46,88 |
7,04 |
|
Chile |
47,63 |
8,28 |
|
Palestina |
47,79 |
3,83 |
|
Camarões |
47,87 |
2,77 |
|
Equador |
48,17 |
6,13 |
|
Kasaquistão |
48,3 |
3,14 |
|
Peru |
48,31 |
6,53 |
|
Armênia |
48,72 |
5,35 |
|
Guatemala |
49,66 |
4,97 |
|
México |
49,67 |
6,07 |
|
Nepal |
51,94 |
5,22 |
|
Guiana |
52,07 |
6,01 |
|
Paraguai |
53,15 |
6,18 |
|
Azerbaijão |
54,56 |
2,68 |
|
Argélia |
57,63 |
3,77 |
|
Marrocos |
58,04 |
5,04 |
|
Honduras |
59,69 |
5,36 |
|
Tailândia |
62,82 |
6,04 |
Fonte: GII (2020); Democracy
Index (2020). Correlação do autor.
Na
tabela 1 temos o resultado da correlação, que confirmou a nossa hipótese. O sinal
negativo do coeficiente de correlação demonstra a relação inversa entre maior
impunidade e menor qualidade da democracia ou do regime político com um nível
de associação considerável. Ou seja, a alta impunidade está associada a
indicadores menores de qualidade democrática. Alta impunidade tende a gerar
menos responsividade por parte dos atores político-institucionais o que
acarreta desgaste, ou até mesmo a morte, da democracia.
países |
impunidade |
democracia |
correl imp v dem |
Costa Rica |
39,51 |
8,16 |
-0,715 |
Panamá |
42,54 |
7,18 |
|
Colômbia |
46,88 |
7,04 |
|
Chile |
47,63 |
8,28 |
|
Equador |
48,17 |
6,13 |
|
Peru |
48,31 |
6,53 |
|
Guatemala |
49,66 |
4,97 |
|
México |
49,67 |
6,07 |
|
Guiana |
52,07 |
6,01 |
|
Paraguai |
53,15 |
6,18 |
|
Honduras |
59,69 |
5,36 |
Fonte: GII (2020);
Democracy Index (2020). Correlação do autor.
Quando
a análise foca apenas nos países latino-americanos investigados pelo GII-20, a nossa
hipótese se torna mais forte ainda. O efeito causal é mais robusto com a
correlação muito significante entre as duas matrizes de dados chegando a um nível
de associação de -0,715. Ou seja, na América Latina a impunidade é mais danosa para a democracia.
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