Elites, regimes e violência



Em livro publicado no início da década de noventa, John Higley e Richard Gunther organizaram uma série de artigos sobre o papel das elites políticas na consolidação, ou não, das democracias na América Latina e sul europeu. No capítulo introdutório, baseado numa concepção minimalista schumpeteriana da democracia, os dois cientistas políticos supracitados, juntos com Michael Burton, desenvolveram o argumento teórico utilizado para analisar o papel das elites políticas em países tais como: Espanha, Colômbia, México, Costa Rica, Venezuela, Uruguai, Argentina, Chile, Peru, Brasil, Portugal e República Dominicana.

Com o título “Elites and Democratic Consolidation in Latin America and Southern Europe” (Cambridge University Press, 1992), os diversos cientistas políticos, de instituições universitárias importantes, desenvolveram o seu argumento em torno do núcleo teórico no qual as elites políticas determinam a consolidação, ou não, do regime político. A diferença, então, não estaria no povo, mas nas elites. Elites essas sem cores partidárias, medidas em sua dinâmica pelo accountability e acomodação em torno das regras do jogo formal da democracia eleitoral.

Apesar da limitação conceitual, baseada em Schumpeter, e na não inclusão de um foco no papel do Estado de Direito, o argumento teórico é enfático: elites políticas que não se acomodam às regras do jogo, que não são responsivas às instituições políticas da democracia, levarão o processo de democratização para dois caminhos: 1. Para a pseudodemocracia ou para 2. Retorno a ditadura.

Pseudodemocracia seria um meio termo entre instituições democráticas e falta de consentimento das elites e das massas em torno dessas instituições. Essa falha levaria o regime a constante instabilidade, principalmente em novas poliarquias (O´DONNELL, 1999).

Dois economistas da University of St. Gallen, da Suíça, Tomas Casas i Klett e Guido Cozzi, desenvolveram um interessante indicador para mensurar qualidade das elites. O Elite Quality Index (EQx2020) trata-se de um indicador baseado na “forma como as ações e as diferentes abordagens na geração de riqueza das elites favorecem ou dificultam o progresso do seu país”. (KLETT; COZZI, 2020).

É um índice de economia política baseado em quatro indicadores principais: a. Poder Econômico; b. Valor Econômico; c. Poder Político; e d. Valor Político. Sinteticamente, mede o quanto as elites criam valores para a sociedade ou, inversamente, extraem valores da sociedade. Parecido com aquilo que Acemoglu e Robinson (2012) desenvolveram em seu argumento. Argumento teórico no qual elites predatórias levam suas sociedades à pobreza, enquanto as geradoras de impulso econômico, que respeitam a propriedade privada e a livre iniciativa são elites progressistas.

O indicador mede entre 0 e 100 e quanto mais próximo deste mais a elite é de qualidade e o inverso, mais próximo de 0, a elite é extrativista. (Cf. figura 1).

 

Figura 1. Modelo da métrica do indicador de qualidade das elites


O índice analisou 32 países dos cinco continentes medindo como as elites criam, ou não, valores econômicos e de desenvolvimento humano e como isso impacta na qualidade de vida das pessoas nesses países.

O ranking dos países pode ser visto na tabela 1 na qual temos o país onde há a melhor elite, no caso de Singapura, e o pior entre os países que é o Egito. O Brasil ficou em 27º lugar entre as piores elites.

O Democracy Index (DI) é um documento da prestigiada Revista Inglesa, a The Economist, que mensura os níveis de regimes políticos entre os países do mundo. Num total de 167 países avaliados, o DI classificou os países em: full democracy, flawed democracy, hibrid regimes e authoritarian regimes. Os países com notas entre 8 e 10 são classificados como full democracies, os entre 7,99 e 6 de flawed democracies, os entre 5,99 e 4 de hibrid regimes e os de 3,99 a 0 de autoritários.

Será que a qualidade das elites políticas tem impacto na qualidade dos regimes políticos?

Definindo regimes políticos de forma quadricotômica, o DI colocou muitos países em situação semidemocrática (MAINWARING ET AL, 2001). Semidemocracia é uma situação de hibridismo institucional na qual o país avança eleitoralmente, mas mantém estruturas autoritárias em muitas de suas instituições, com destaque as ligadas ao aparato coercitivo estatal (NÓBREGA JR., 2010; 2019; 2020).

Por exemplo, Singapura, país que apresentou o melhor indicador do EQx2020 foi classificado como um regime semidemocrático (flawed democracy) conforme o DI. Contudo, o país logo abaixo de Singapura, Suíça, apresentou um ótimo indicador de regime político, 9,03, portanto uma democracia consolidada, com ótimo indicador no EQx2020. Já o Egito, apresentou os dois índices péssimos. Péssima qualidade das elites (40) com péssimo indicador de regime político, 3,36, portanto, uma ditadura.

Em nossa definição do conceito procedimental de democracia, mostra-se fundamental o estado de direito como garantia aos direitos civis e políticos dos indivíduos (O´DONNELL, 1999; NÓBREGA JR., 2019; NÓBREGA JR., 2020). Uma definição de regime político democrático consolidado que não ultrapassa o eleitoralismo é considerada submínima (MAINWARING ET AL, 2001; ZAVERUCHA, 2005).

Daí ser incompatível com o estado de direito democrático altos níveis de violência, sobretudo de homicídios. Um regime político que promove eleições conforme a teoria, mas não consegue controlar minimamente a violência homicida, esse regime é no máximo semidemocrático (NÓBREGA JR, ROCHA e ZAVERUCHA, 2011).

Dessa forma, mostra-se fundamental inserir no debate a qualidade do estado de direito em controlar os homicídios. Daí, para testar a teoria democrática, inseri as taxas de homicídios desses países para tentarmos associar, ou testar o nível de associação, entre a qualidade das elites (medida pelo EQx2020), a qualidade dos regimes políticos (medida pelo DI da The Economist), e a qualidade do estado de direito na garantia dos direitos civis (medida pelas taxas de homicídios por cem mil habitantes) [sumarizada na tabela 1].

Tabela 1. Elites, regimes e violência


Os resultados das associações podemos ver na tabela 2 abaixo:

Tabela 2. Correlações entre os grupos de dados – elites, regimes e violência.

CORREL ELITES X REGIME

CORREL ELITES X TX HOM

CORREL REGIME X TX HOM

0,556

-0,546

-0,112

Formatado pelo autor no Excel.


As correlações de Pearson apresentadas na tabela dizem o seguinte:

1.     Há correlação de moderada a alta entre melhor qualidade das elites e regimes políticos de democracias consolidadas;

2.     Há correlação de moderada a alta, com sinal negativo, entre qualidade das elites e menos violência;

3.     Há correlação fraca, também com sinal negativo, entre a qualidade do regime e o controle da violência.

Portanto, podemos afirmar que a nossa hipótese teórica está certa. Para termos democracias avançadas (consolidadas) são necessárias elites responsivas de qualidade. Elites importam muito para a qualidade do regime e o controle da violência porque são elas que estarão nos principais quadros de poder (nos três poderes de uma república democrática, por exemplo) e nos principais campos de atuação econômico.

Visualizando os gráficos com os dados da tabela 1, percebemos o alinhamento entre os indicadores de qualidade das elites com os níveis de regime político e como as taxas de homicídios se concentram nos países de menor qualidade entre as elites e onde se encontram os piores níveis de democratização.

Gráficos dos indicadores sumarizados da tabela 1.

Formatado pelo autor.


Referências bibliográficas:

ACEMOGLU, Daron; ROBINSON, James (2012). Por que as Nações fracassam. Ed. Campus.

HIGLEY, John and GUNTHER, Richard (1992). Elites and Democratic Consolitation in Latin America and Southern Europe. Cambridge University Press.

KLETT, Tomas Casas i; COZZI, Guido. (2020). Elite Quality Report 2020. 32 Country Scores and Global Rank. Zurich: Seismo.

MAINWARING, Scott; BRINKS, Daniel e PÉREZ-LIÑAN, Aníbal (2001). “Classificando regimes políticos na América Latina” in Dados, vol. 44. n. 4, pp. 645-687.

NÓBREGA JR., J. M. (2010). “A Semidemocracia brasileira: autoritarismo ou democracia?”. Sociologias. N. 23.

NÓBREGA JR., J. M. (2019). Democracia, violência e segurança pública no Brasil. Ed. UFCG. Campina Grande.

NÓBREGA JR., J. M. (2020). Segurança pública e democracia: um novo conceito. Manuscrito.

O´DONNELL, Guillermo (1999). “Teoria Democrática e Política Comparada”. Dados. V. 42. N. 4. Rio de Janeiro.

THE ECONOMIST (2019). Democracy Index 2019. A year of democratic setbacks and popular protest. Intelligence Unit.

ZAVERUCHA, Jorge (2005) FHC, forças armadas e polícia. Entre o autoritarismo e a democracia 1999-2002. Record. Rio de Janeiro.

Formatado pelo autor no Excel.





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