Democracia x Multiculturalismo

 



José Maria Nóbrega Jr. – Doutor em Ciência Política UFPE, Professor Associado UFCG.

A democracia contemporânea é liberal. Ou seja, além de eleições livres e limpas, pressupõe liberdades civis e políticas como balizadores do método democrático (eleições). Ela não enxerga diferenças entre indivíduos. Prevalece o império da lei nas arbitragens dos conflitos em sociedade.

Já o multiculturalismo é a política da diferença. O seu fundamento é a distinção dos diversos grupos existentes na sociedade. “A ruptura com a perspectiva liberal é profunda, na medida em que grupos – e não só indivíduos – são considerados sujeitos de direitos” (MIGUEL, 2005: 8). Nessa perspectiva, deve-se enxergar às diferenças.

Está na ordem do dia o conflito entre democracia e multiculturalismo. O primeiro, tenta estabilizar os conflitos de forma institucional e com a aplicação das regras uniformes aos indivíduos em sociedade. E o segundo, busca jogar o olhar específico do Estado a determinados grupos que se sentem especiais ou injustiçados historicamente pelas instituições.

A agenda multicultural contemporânea, principalmente a de cunho racial, vem dominando a agenda midiática. Vejo como uma afronta à democracia. Crimes comuns muitas das vezes estão sendo propagados como crimes raciais quando, na verdade, a motivação não foi racial ou mesmo cultural (intolerância ao diferente). Isso joga os princípios caros da democracia, ou seja, as liberdades liberais clássicas que dão base ao conceito de democracia, na lata do lixo. Crimes comuns terminam sendo vistos de forma fantasiosa como resultado de “preconceitos” e “racismo” quando, na verdade, foi fruto de uma desavença ou de uma agressão iniciada pela vítima. Necessita de investigação policial, acusação, abertura de denúncia, direito à defesa, julgamento e condenação ou absolvição. Em torno de 70% dos homicídios no Brasil não tem solução. Muitos nem iniciam o processo de investigação.

O Estado Democrático de Direitos fica ameaçado, principalmente em contextos de democracias frágeis (democracias eleitorais iliberais). Os princípios e critérios das liberdades civis e políticas ainda não consolidados nessas democracias terminam colocados como direitos “burgueses” e “brancos” quando, na verdade, são violados por falhas nas instituições que devem garantir tais direitos. Uma distorção danosa a própria democracia.

O lema internacional “Vidas Negras Importam” é um exemplo claro dessa vertente multicultural como crítica ao modelo de democracia ocidental. Na verdade, qualquer vida importa quando é ceifada violentamente e é papel do Estado Democrático de Direito, em seu poder de monopólio da força e da violência legal, submeter todos às leis.

Outro discurso que ganha proporções imensuráveis é o das mortes dos jovens negros na periferia do Brasil. É outro aspecto do multiculturalismo que esconde a realidade. A maioria desses jovens é assassinada por rivais que possuem o seu mesmo perfil social, cultural e econômico. São jovens pobres e pardos da periferia que se matam por ninharias. Mas, a grande mídia generaliza como algo produzido pelas injustiças sociais ou pelo braço policial do Estado, que sim, mata bastante, mas não chega aos 10% dos homicídios que ocorrem no país.

O multiculturalismo é um risco à democracia, pois a sua agenda é falaciosa em grande medida e despreza o componente liberal da sociedade, ou seja, a igualdade perante as leis. A sua agenda é de grupos, rivalizando com a ideia de liberdades civis e políticas nas quais há divergência e pluralismo de ideias, tentando implantar a sua ideia como a verdadeira, desprezando a crítica e desqualificando, quando não ofendendo, a quem não concorda com a sua agenda.

Na democracia prevalece a igualdade entre indivíduos em suas potencialidades, respeitando o direito das maiorias e das minorias numa realidade na qual não há ninguém legibus solutus. A ideia de divisão de poderes, de eleições periódicas livres e limpas, de liberdade de expressão e de imprensa, de garantias constitucionais a integridade física e material dos indivíduos, tais requisitos estão acima da agenda de grupos e deve prevalecer a igualdade entre indivíduos submetendo o interesse de grupos a agenda da democracia.

Referência bibliográfica:

MIGUEL, L. F. (2005), “Teoria Democrática Atual: Esboço de Mapeamento”. BIB. São Paulo, no. 59, 1º semestre de 2005, pp. 5-42

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