A democracia está em crise?
A maioria dos cientistas
políticos vem afirmando que a democracia está em crise na América Latina. O mote
para o argumento desses cientistas políticos é a escolha de líderes nada democráticos,
resultado de crises econômicas e de escândalos de corrupção. A crise seria o
resultado da falta de credibilidade das instituições eleitorais perante a
opinião pública, sobretudo os partidos políticos e o parlamento. No caso
específico do Brasil, a eleição de Bolsonaro seria o principal sinal desse
descrédito institucional. Contudo, a falta de credibilidade das instituições de
representação no Brasil nada mais é que a falta de consolidação do regime
político democrático por aqui, que, diga-se de passagem, regime tem conceito
mais amplo em relação a democracia como mecanismo de escolha de governantes.
Na verdade, a democracia
brasileira nunca se consolidou. Desde a redemocratização, passando pela
promulgação da constituição federal de 1988, não houve um processo de transição
(do regime autoritário para o regime democrático de fato) completado. O
processo até o momento não foi finalizado. Entulhos autoritários nas
instituições políticas, bem como nas instituições coercitivas (polícias,
ministério público, justiça criminal e sistema carcerário), foram mantidos em muitos
aspectos.
Isso passa pelo conceito de
democracia que padece de um grande vazio conceitual na maior parte das análises
políticas que a gente tem acesso na mídia, inclusive de especialistas renomados.
Esse vazio conceitual é sério e leva muitos a basearem seus argumentos em primário
senso comum. Muitas das análises tem como pano de fundo um empirismo bastante
ingênuo no qual a referência quase sempre é uma pesquisa de opinião (sabemos que
pesquisas de opinião não são grandes instrumentos de análises políticas consistentes),
e aí a análise cai numa perspectiva rasa na qual o sentimento de descrédito da
democracia seria o resultado da falha econômica e da corrupção generalizada. A
maioria dos analistas termina fazendo comentário meramente jornalístico a
respeito de tema tão complexo.
A democracia como conceito não
é tão simples como se imagina. Não é o mero exercício do poder por parte do povo
e/ou de seus representantes. A democracia moderna é o resultado de grandes e
complexos conflitos históricos, de muita sociologia política e de complexo
emaranhado teórico da filosofia política clássica, moderna e contemporânea. Há
uma clara dependência histórica do conceito.
A democracia como forma de
governo reporta a história dos gregos e romanos. A participação direta na coisa
pública é um aspecto da ágora ateniense. Os limites do poder do príncipe é
aspecto da república romana. Daí, o pensamento foi evoluindo até os dias de
hoje. Filósofos da política na renascença foram responsáveis pelo resgate da discussão
greco-romana. Mas, desde a baixa Idade Média, pensadores já traziam suas preocupações
em torno das instituições democráticas na Grécia Antiga e das instituições da
República Romana.
Na modernidade, as ideias do
liberalismo revolucionaram a concepção de liberdade individual na qual direitos
naturais (vida, bens e liberdade) precisavam estar alicerçados em regras e instituições
para se valer na realidade. Daí surgiu o estado moderno que, além das garantias
econômicas das relações comerciais, precisava manter o indivíduo sob controle e
o coletivo no respeito das leis.
Com o fortalecimento do
liberalismo político e econômico, veio a necessidade de se manter uma estrutura
minimamente equilibrada de poder e o republicanismo foi a solução. O liberalismo,
moderno, e o republicanismo, antigo, se juntavam na ideia de soberania dos
estados-nação na modernidade. As garantias individuais somadas ao império da
lei no qual não há ninguém legibus solutus, nem mesmo o rei.
Essas duas estruturas
conceituais estão na base da democracia contemporânea. Na modernidade sabia-se
da impossibilidade da democracia direta tal qual se via em Atenas. Se instituiu
ali o mecanismo da eleição, essa ideia de representação vai ser reforçada com a
introdução do voto universal que tem o seu prelúdio no século XIX. A democracia
eleitoral será a terceira etapa de fundação das democracias hoje avançadas,
todas situadas na região norte do Globo.
O conceito de democracia
revela a sua dinâmica coadunada entre os conceitos de liberalismo e republicanismo
nos quais as instituições políticas precisam estar alicerçadas. Tais componentes
históricos em países nos quais a história não foi alvissareira para estes
precisam ser fortalecidos em paralelo à realização de eleições limpas e livres.
O que não acontece, e nunca aconteceu, na maioria dos estados latino-americanos,
incluindo aí o Brasil.
O nosso modelo de democracia
não aprofundado nesses conceitos, termina por dar a impressão de ciclos de
crise da democracia em nossas plagas. Mas, na verdade, não há crise, mas sim
falta de consolidação do regime político democrático em cima de bases liberais
e republicanas críveis que gere accountability por parte das elites
políticas responsáveis pelas tomadas de decisão do Estado.
As falhas sequenciais nesses
dois componentes são enxergadas na ossatura do Estado. Essas falhas terminaram
por gerar um Estado muito mais preocupado com ele mesmo do que com os
indivíduos em sociedade. Não é a toa que tortura, agressões frequentes de suspeitos
de crimes, condenações midiáticas, desrespeito ao devido processo legal, dentre
outras bizarrices, sejam tão frequentes por aqui.
O termômetro principal do
funcionamento institucional de uma democracia não é o funcionamento das
instituições de representação (partidos políticos, congresso, presidência etc.),
mas sim como de fato funcionam as instituições do Estado responsáveis pela
manutenção da ordem e da lei.
Violações constantes das
liberdades individuais por parte do Estado e de terceiros (que o Estado não
vigia e não pune); e um modelo de regime no qual elites políticas estão acima
da lei, não vigorará ali um regime político democrático estável e, por sua vez,
a democracia estará sempre em crise, ou em ciclos de crise e credibilidade, já
que a maioria dos analistas políticos tem como base pesquisas de opinião e não
a velha e difícil teoria política.
Democracia é um conceito que
pode ser definido minimamente como um regime político no qual, para que haja eleições
livres, limpas e institucionalizadas, há necessidade de que o Estado de Direitos
dê a base para o sucesso do método democrático que, mesmo numa visão mínima da
democracia, requer condições fundamentais para esse sucesso. Condições nada triviais,
pois garantir as liberdades clássicas, o império da lei e controle da violência
e da corrupção não é nada trivial e requer instituições coercitivas na base,
que funcionem conforme os conceitos de liberalismo e de republicanismo.
Então, liberdades garantidas,
império da lei e controle da violência e da corrupção darão as condições
necessárias para que as eleições realmente se realizem de forma integral, sem
excluir boa parte da população que vive em regiões nas quais o Estado não se faz
presente e, quando faz, é para reprimir, torturar, delinquir.
Para que a democracia seja
considerada consolidada ninguém - nem instituição, nem ator político algum -,
está acima da lei. Violações constantes aos direitos individuais, corrupção
desenfreada são resultados da impunidade que é característica de estados nos
quais as instituições coercitivas estão longe de serem republicanas. Dessa
forma, o equilíbrio entre liberalismo e republicanismo é condição para o
sucesso da democracia, seja como método de escolha, seja como substância.
Daí, respondendo a pergunta
de intitula este ensaio, a democracia brasileira não está em crise, mas nunca
esteve consolidada. Por isso, pensamos que as crises na democracia são muito
mais o resultado de falhas econômicas e da corrupção em si, do que da
fragilidade institucional que é característica das democracias não consolidadas,
ou semidemocracias, ou semipoliarquias, todos conceitos que dizem respeito a
regimes políticos híbridos (ou seja, que possuem instituições democráticas e
autoritárias convivendo sob o mesmo “teto”).
By JMN.
Não são poucos cientistas políticos que afirmam que realmente a democracia está em crise, como estudante de ciência política não concordo com a ideia de uma democracia em crise, mas observo que esse regime está sendo dia após dia ameaçado por aqueles que se dizem democrático que na verdade não são, são sim, subversivos da forma de governo mais fascinante do cosmo que é a democracia.
ResponderExcluirOlá, perfeito!
ExcluirA democracia é um regime político instável por natureza. Me parece, também, ser um regime em constante crise, inclusive de credibilidade. No entanto, se torna mais grave a falta de uma discussão mais esmerada sobre o conceito de democracia. Muitas dos regimes políticos que se dizem democráticos são, na verdade, regimes híbridos semidemocráticos.
Grato!