30 anos da queda do muro
Passados 30 anos da queda do
muro de Berlim, novos muros foram erguidos mundo a fora. No entanto, o símbolo
que essa ruptura nos trouxe nos revelou uma nova era, uma nova (des)ordem
mundial. O comunismo perdeu de vez a sua força real, mas continuou a ludibriar
as mentes de homens e mulheres pelo mundo, principalmente nas zonas periféricas,
como na América Latina. No entanto, o muro caiu e com ele o mundo bipolar –
comunismo x capitalismo; socialismo x democracia liberal -, que foi substituído
por uma miscelânea cultural e política que nos desafia até o presente.
É simplório dizer que a democracia
liberal está em crise e que as suas limitações podem levar ao ressurgimento de
regimes autoritários, pois tais regimes não deixaram de existir e a democracia
sempre esteve em constante crise, até mesmo nos países mais desenvolvidos. É só
observar a classificação de regimes políticos no mundo, apenas 11% dos países
são classificados pelos órgãos de mensuração de regimes políticos, a exemplo da
The Economist Intelligence Unit (2018), como democracias consolidadas. A
maioria dos países é classificada como regimes híbridos (semidemocracias ou
semiautoritarismos). Na América Latina são poucos os países de democracias cheias
(full democracy). Na verdade, a democracia liberal nunca foi completada
na maior parte do Globo.
A ordem mundial que se
seguiu após a queda do muro de Berlim foi redesenhada numa série de
redemocratizações incompletas que, até o momento, pouco se efetivou nos países
que passaram por ela. Falta às instituições dos países que passaram pela
redemocratização pós-queda do muro o fortalecimento de categorias que, como bem
ensinou Guillermo O´Donnell, cientista político argentino, permaneceram fracas,
elas: o republicanismo e o liberalismo. Nesses países fora do quadrante
noroeste das democracias avançadas, a vida privada, a liberdade individual e o
império da lei sempre sofreram violações por parte do estado e de membros de
suas sociedades, membros esses legibus solutus, ou seja, que agem acima
da lei formal do estado.
Os Estados Unidos
continuaram na sua missão de propulsores da democracia liberal onde essa fosse
possível existir. Não mais como no sistema bipolar que sobreviveu ao fim da segunda
guerra mundial até o ocaso do comunismo como forma de governo, mas numa nova realidade
muito mais fluída e de difícil compreensão quando, sobretudo depois do atentado
terrorista de 11 de setembro de 2001, o inimigo já não era de tão fácil
identificação.
O mundo pós-queda do muro de
Berlim é o mundo dos radicalismos, não obstante as redemocratizações. Radicalismos
do fundamentalismo islâmico e da criminalidade organizada. A violência
exacerbada e descontrolada foi o resultado dessa desarticulação política
internacional produto do fim do mundo bipolar. Uma era na qual a democracia
liberal foi colocada como o regime vitorioso que os países precisam implementar
em suas plagas para o sucesso das decisões políticas, que passariam a levar em
conta os critérios basilares das democracias contemporâneas, tais quais as
liberdades clássicas e o republicanismo, mas que tem em seus territórios grupos
que enxergam estes critérios como ameaças as suas ideologias e fundamentalismos
dos mais diversos.
No contexto do mundo
periférico, as democracias delegativas – tais quais foram definidas por
O´Donnel como regimes políticos nos quais,
mesmo com a escolha de governantes eleitos em pleitos eleitorais limpos
e livres, não se caracterizam como democracias consolidadas em que os aspectos
liberais e republicanos deveriam estar salvaguardados – convivem com realidades
de extrema violência, com níveis elevadíssimos de corrupção e de impunidade revelados
pelas lacunas institucionais vigentes nos seus sistemas políticos. Apesar do
implemento de dispositivos eleitorais críveis e limpos, nesses países não se
consegue efetivar democracias robustas e que levem ao desenvolvimento de suas
sociedades. Terreno fértil para o surgimento de “líderes” políticos
oportunistas, irresponsivos e populistas.
Os conflitos hoje vistos em Hong
Kong e no Chile também nos faz refletir sobre o andamento da ordem mundial nessa
era surgida pós-queda do muro de Berlim. Os Estados Unidos, governados por um
presidente pouco afeito ao consenso, ainda são os “policiais” do mundo tal como
referenciado por Paul Kennedy em sua obra “Ascensão e queda das grandes potências”,
e esse papel é fundamental para o equilíbrio de poder e o arrefecimento dessas
grandes convulsões sociais que, acima de tudo, pedem mais liberdade e
democracia, mas que depende do papel de condutor mundial dos Estados Unidos.
Estes permanecem em grande letargia.
Em Hong Kong, temos a luta
dos estudantes por democracia numa região que até 1998 estava sob a salvaguarda
do governo inglês e foi devolvida a China comunista. A China, regime dos mais
autoritários do planeta, não é afeita à democracia e quer impor o controle
total das mentes e dos corpos dos habitantes de Hong Kong. O conflito já dura
meses e até o momento a comunidade internacional permanece na inércia.
No Chile, apesar de grande
parte da mídia brasileira afirmar que os conflitos são resultante de revoltas
sociais em torno de uma agenda social, nos parece uma luta ideológica na qual “guardiões”
regionais do socialismo do século XXI procuram desarticular o regime
político democrático para instalar uma
nova onda de revoltas que visam o retorno da esfera de poder da esquerda nos
países da região. Digo isto porque o Chile aparece nos órgãos de classificação
de regimes políticos como uma das poucas democracias fortes da América Latina,
apresentando níveis altos de processos eleitorais e pluralismo político, de
cultura e de participação política, de liberdades civis e políticas e de
governança, bem como índices módicos de corrupção e de impunidade.
O mundo islâmico nos parece
mais radical do que nunca. As ondas migratórias para a Europa nos dão a
dimensão do problema, principalmente quando olhamos para a África e a Ásia.
Guerras, pobreza, massacres, violações aos direitos humanos e ao direito
internacional são questões constantes dessas regiões. Poucos são os países que
respeitam os princípios instituídos na Carta Declaratória dos Direitos do Homem
e do Cidadão.
Nas palavras de Henry
Kissinger temos a dimensão dessa (des)ordem mundial pós-queda do muro de
Berlim:
Na
realidade, em alguns lugares, o desprezo pelas normas universais (como os
direitos humanos, os procedimentos legais ou a igualdade das mulheres),
consideradas como preferências claramente associadas aos países do Atlântico
Norte, é tratado como se fosse inequivocamente uma virtude e o próprio cerne de
sistemas alternativos de valores. (KISSINGER, 2014: 367).
O mundo pós-queda do muro de
Berlim não é um mundo multipolar, mas um mundo no qual as realidades de seus sistemas
sociais e políticos são cada vez mais contraditórias. O equilíbrio das relações
sociais internacionais ainda é uma incógnita passados esses trinta anos dessa
nova era pós-queda do muro. A miscelânea resultado do fim do mundo bipolar
ainda nos intriga e, como estudioso dos regimes políticos latino-americanos, questiono
o a situação de coisas vigente nesse continente que ainda convive com regimes
como os de Cuba e, mais recentemente, da Venezuela.
A Venezuela, país que entre
1958 e 1998 teve uma democracia estável, vive hoje numa situação vexatória na
qual a miséria e o autoritarismo são a realidade concreta. A Venezuela
apresentou um dos piores indicadores de democracia da região pelos critérios do
órgão de classificação de regimes políticos Varieties of Democracy
(2017), ficando atrás de Cuba. Pode-se dizer que é um regime plenamente
autoritário. A atual situação de violência, a fraqueza das instituições
democráticas, os ataques contra a liberdade de expressão e os casos evidentes
de violações sistemáticas dos direitos humanos são características explícitas.
A decisão da Venezuela de sair das instituições do Sistema Interamericano, como
a Organização dos Estados Americanos e o sistema de direitos humanos, é
deplorável. Este é um sinal grave de que os níveis de impunidade aumentaram
naquele país e podem se deteriorar ainda mais no futuro próximo.
No Brasil, país que concentra
10% dos homicídios do mundo, a desordem provocada pela instabilidade política resulta
em uma semidemocracia que é resultado da fragilidade constante de nossas
instituições. Com decisões parciais, o Judiciário é dependente do poder
político e a interpretação da Constituição dita democrática fica ao bel prazer das
vicissitudes políticas. Corrupção, violência desmedida/doentia, crime
organizado, impunidade e ineficiência político-administrativa é a nossa marca.
A anarquia na maior parte do
mundo fora das democracias consolidadas de países avançados é a regra. Estados
fracos, zonas marrons desgovernadas onde, na verdade, grupos de guerrilheiros
rebeldes, ou quadrilhas de criminosos, tomam as rédeas do poder e assumem o que
deveria ser de domínio do Estado. O monopólio da força inexiste, e o conflito,
a violência sangrenta, prevalecem. O papel das nações soberanas, principalmente
dos Estados Unidos, na recondução da ordem mundial pós-queda do muro do Berlim
nos parece algo urgente. Realinhar o mundo numa concepção na qual o desenvolvimento
das sociedades só se dará em ambientes equilibrados, nos quais o poder seja limitado
pelo poder, com pleitos eleitorais
constantes, com alternância de poder, com partidos políticos que mantenham uma
zona de decisão no centro da esfera ideológica, com segurança pública efetiva, com
a violência e a corrupção sob controle nos parece a lógica pela qual as
sociedades devem buscar o equilíbrio. O mundo pós-queda do muro de Berlim, pós-comunismo,
ainda é um mundo incerto, desequilibrado e em constante ameaça.
by JMN
by JMN
Parabéns pelo artigo! Colocações muito assertivas! Abraços!
ResponderExcluirMarcos Cardim
obrigado Marcos! Forte abraço!
ExcluirComo estudante de Ciência Política , posso dizer que esse artigo que acabei de ler foi o mais relevante e completo, ou seja, conteúdo de qualidade. Parabéns.
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