Democracia, violência e impunidade na América Latina
A
Teoria Democrática Contemporânea tem o seu “divisor de águas” com a publicação
do livro “Capitalismo, Socialismo e Democracia” de Joseph Schumpeter, em 1942.
Nesta obra, mais especificamente nos três capítulos referentes à democracia,
Schumpeter desconstruiu o conceito clássico de democracia participativa de
Rousseau afirmando que tal conceito só existe no discurso pré-fabricado da
propaganda político-eleitoral.
Dali
até hoje, a Teoria Política Contemporânea se dividiu entre os adeptos do
chamado método democrático de Schumpeter, ou da visão minimalista da
democracia, e os seus críticos. O método schumpeteriano influenciou autores
como Robert Dahl e Anthony Downs que construíram bem-sucedidas edificações
teóricas que sugeriam pesquisas empíricas no campo da política comparada.
Principalmente
Dahl, em sua obra clássica da Ciência Política Contemporânea, Poliarquia (DAHL, Robert (2005). Poliarquia. Participação e Oposição. EDUSP), se transformou no principal
referencial teórico capaz de conceituar a democracia numa perspectiva
minimalista, mas com o foco em algumas “liberdades liberais clássicas”
fundamentais para o sucesso do método democrático.
O mainstream da Ciência Política brasileira
conceitua e avalia as democracias sob o viés submínimo. Ou seja, a democracia é
analisada pelo jogo político eleitoral entre as elites partidárias. No entanto,
no campo da teoria democrática procedimental, o foco apenas no jogo eleitoral
esconde questões que são fundamentais para o sucesso do regime democrático. Este
deve ser visto como um conjunto de instituições responsáveis pelas garantias
das liberdades políticas e civis, ingredientes sem os quais dificilmente haverá
eleições livres e isentas.
A problematização
em torno da qualidade da democracia deve partir de parâmetros conceituais que
perpassem a definição meramente eleitoral, ou schumpeteriana. Morlino (MORLINO,
Leonardo (2015), “Qualidades da democracia: como analisá-las”. Soc. e Cult., Goiânia, v. 18, n. 2, p.
177-194, jul./dez. 2015.) definiu o conceito de ‘qualidade’ de uma democracia em
sua capacidade de garantir eleições livres, limpas e isentas e na capacidade
estatal de garantir o império da lei.
O
cientista político argentino, Guillermo O´Donnell (O´DONNELL, Guillermo (1998). “Accountability
democrática e novas poliarquias”. Lua
Nova. Nº 44; e O´DONNELL, Guillermo (1999). “Teoria Democrática e Política
Comparada”. Dados. V. 42. N. 4. Rio
de Janeiro)
definiu democracia como um regime político no qual, além dos critérios
schumpeterianos, o estado de direito deve ser usável para ampla maioria dos
cidadãos agentes ativos do processo político. Já Mainwaring et al (MAINWARING,
Scott; BRINKS, Daniel e PÉREZ-LIÑAN, Aníbal (2001). “Classificando regimes
políticos na América Latina” in Dados,
vol. 44. n. 4, pp. 645-687), definiram o conceito de democracia consolidada de
forma pragmático-procedimental, fazendo comparações entre as democracias
eleitorais na sua capacidade estatal, sobretudo na garantia de direitos
políticos e civis, e no controle dos civis eleitos sobre os militares.
A hipótese a ser testada aqui é se a violência
e a impunidade são fatores que maculam decisivamente a qualidade das
democracias, sobretudo aquelas advindas de processos de transição de ditaduras,
caso de muitos regimes latino-americanos. Prescindir do exame da qualidade da
democracia no quesito “capacidade estatal no controle da violência e da impunidade”
pode levar a interpretações míopes da realidade política. Adiante, testaremos a
correlação entre a qualidade desses regimes políticos e a capacidade estatal no
controle da violência e da impunidade na América Latina.
Para tanto, é fundamental definir o conceito
minimalista de democracia para esse nosso propósito. A democracia
liberal é definida como um regime no qual:
1.
As
eleições se dão em processos livres, limpos, igualitários, justos e regulares,
e institucionalizados, ou seja, as eleições dependem de regras que antecedem o
exercício do poder;
2.
Para
que as eleições sejam realmente livres e limpas, os direitos políticos
dahlsianos precisam ser preenchidos a contento e aí, além das liberdades de
informação, mostra-se fundamental a integridade física dos eleitores, ou seja,
estes precisam de um Estado de Direito usável do ponto de vista da garantia de
sua cidadania;
3.
A
capacidade estatal em controlar a violência e a impunidade são fatores causais
para o sucesso e consolidação do regime político democrático. Violações aos
direitos humanos, homicídios descontrolados, violência e crime organizado não
são toleráveis em uma democracia consolidada, e podem levar ao colapso a
democracia como mecanismo de escolha de governantes.
Dessa
forma, a definição do conceito de democracia liberal é tridimensional, ou seja,
além das duas dimensões de Dahl – contestação e inclusão ou sufrágio universal
-, encontradas nos dois primeiros aspectos do conceito aqui delineado, incluir-se-á
a dimensão controle da impunidade e da violência como requisitos mínimos das
democracias contemporâneas, já que, sem um controle estatal temos a lacuna no
que o sociólogo alemão Max Weber chamou de “monopólio do uso da força” e da
“violência legal” (cf. figura 1).
Figura 1. Organograma do conceito de
democracia liberal em 3D
Formatada pelo autor.
Ao
avaliarmos a história do surgimento do estado moderno, e da democracia moderna,
destacamos que foi, em primeiro lugar, o controle mínimo da violência e da
impunidade que alicerçou o caminho para a consolidação das democracias
avançadas nos países originários.
De
agora em diante, vamos medir o nível de democracia na América Latina e a
correlação com indicadores de violência e de impunidade. Utilizaremos os seguintes
indicadores para cada um dos critérios de democracia elencados pela teoria. As
duas primeiras dimensões da democracia serão mensuradas pelo nível de
democracia liberal conforme definido pelo Varieties
of Democracy Institute (V-DEM Institute).
O V-DEM Institute (V-Dem) é um órgão que
avalia as variações de regimes políticos. Em uma escala com cinco variáveis:
eleições, princípios liberais, participação, igualdade perante às leis e
deliberação (V-Dem Annual Report,
2017), essas variáveis são medidas particularmente e, agrupadas, gerando uma
média entre 0 (não-democracia) a 1 (democracia plena).
Utilizando
a escala do V-Dem, os países latino-americanos ranqueados entre 0,600 e 1 foram
classificados em democráticos, aqueles entre 0,599 e 0,300 em semidemocráticos
e aqueles entre 0,299 e 0 como países semiautoritários, ou plenamente
autoritários. Então, a democracia eleitoral foi medida pela escala do V-Dem,
medindo, daí, as duas primeiras dimensões da democracia liberal e, para
mensurar os níveis de impunidade e de violência, que são os indicadores que
completam a terceira dimensão do conceito de democracia liberal, foram
utilizados os dados do Global Impunity Index (ORTEGA, Juan Antonio L. C.; e LARA, Gerardo R. S. (2017), ÍNDICE
GLOBAL DE IMPUNIDADE (2017), Global
Impunity Dimensions. Universidad de Las Américas Pueblas. Jenkins Graduate
School. Center of Studies on Impunity and justice (CESIJ) (GII-17) e as
taxas de homicídios dos países conforme dados resgatados do Banco Mundial, para
o ano de 2015.
O
GII-17 produziu um indicador de impunidade e comparou os níveis de impunidade
em 69 países. A construção do índice teve como base às seguintes categorias: (a)
policial por cem mil habitantes; (b) magistrados por cem mil habitantes; (c) capacidade
prisional; (d) respeito aos Direitos Humanos; e (e) prisão de homicidas por
número total de homicídios perpetrados. O índice foi calculado ordinariamente
entre 0 = nenhuma impunidade e 100 = total impunidade. A classificação
metodológica seguiu a seguinte lógica: Low
and Very Low Impunity (36 a 41 pontos); Intermediate
Impunity (50,2 a 59,4 pontos); Countries
with a Higher Impunity Index (60,6 e 75,6 pontos).
Dos 69 países
analisados, 15 foram latino-americanos. O mais democrático foi a Costa Rica com
um indicador de 0,844 em democracia liberal, sendo a democracia mais sólida da
América Latina. Sua taxa de homicídios foi de 11,8, um pouco acima do nível de
tolerância internacional que é de 10/100 mil. Seu indicador de impunidade foi
de 54,5, o país com menor taxa de impunidade da região, classificada na zona de
impunidade intermediária segundo o GII-17. A Costa Rica só apresentou taxa de
homicídios maior que Chile, Argentina e Paraguai.
O
Chile foi o país com a segunda melhor classificação de democracia. Também uma
democracia considerada sólida, com indicador de 0,752, o seu nível de violência
foi o menor da região, com taxa de 4,6/100 mil, e a sua taxa de impunidade de
59,05 foi a terceira menor da região, também numa zona intermediária. O Chile corrobora
para a forte conexão causal entre democracia, controle da violência e menor
impunidade.
A
Argentina ficou no terceiro lugar como regime político mais bem avaliado na
região. Com um indicador de 0,636, também uma democracia consolidada, apresentou
a segunda menor taxa de homicídios da América Latina, 6,5/100 mil, e a segunda
menor taxa de impunidade da região, com 58,87. Os indicadores da Argentina
estão correlacionados e confirmam a nossa hipótese teórica.
Nas
democracias ditas frágeis, ou semidemocráticas,
os dados de impunidade foram mais expressivos. Quando cruzamos os dados
de democracia de Panamá, Peru, Brasil, Colômbia, El Salvador, México,
Guatemala, Paraguai, Equador e Honduras – todos classificados como
semidemocráticos pelo V-Dem -, a conexão causal entre baixos níveis de
democratização e impunidade é maior. Fazendo uma correlação entre os conjuntos
de dados de democracia e de impunidade desses países o R=0,371. A maioria deles
com taxas de homicídios altas, a exemplo de El Salvador, com taxa de homicídios
de 108/100 mil, e nível de democracia híbrida, com alto indicador de
impunidade.
A Venezuela
apresentou o pior indicador de democracia da região (0,149). Pode-se dizer que
é um regime plenamente autoritário. A atual situação de violência, a fraqueza
das instituições democráticas, os ataques contra a liberdade de expressão e os
casos evidentes de violações sistemáticas dos direitos humanos são
características explícitas. A decisão da Venezuela de sair das instituições do
Sistema Interamericano, como a Organização dos Estados Americanos e o sistema de direitos humanos, é
deplorável. Este é um sinal grave de que os níveis de impunidade aumentaram naquele
país e podem se deteriorar ainda mais no futuro próximo.
Tabela 2. Correlação dos conjuntos de
dados
Hom vs imp
|
Dem vs hom
|
Dem vs imp
|
0,236
|
-0,333
|
-0,609
|
Formatado pelo autor.
Analisando
as correlações dos conjuntos de dados: homicídios vs. Impunidade; democracia
liberal vs. Homicídios; e democracia liberal vs. Impunidade, dos países da
tabela 1, verificamos os níveis de correlação entre os indicadores. Os
homicídios tem correlação moderada e positiva com impunidade, ou seja, a tendência
é de aumento de uma variável com impacto no crescimento da outra variável. A
democracia liberal tem correlação negativa com os homicídios, ou seja, um decresce
e a outra cresce, o que corrobora para a interpretação na qual a qualidade da
democracia na América Latina, em parte, depende do controle estatal da violência.
E a democracia liberal tem correlação negativa alta com a impunidade, isto quer
dizer que quanto maior o índice de democracia menor o de impunidade e vice-versa.
Daí, a democracia liberal, para se consolidar e, por consequência, ter
qualidade, é preciso que a impunidade caia nos países latino-americanos.
A
democracia como conceito na ciência política é polissêmica, são muitos os
significados, mas, na ciência política contemporânea mostra-se fundamental
defini-la conceitualmente numa perspectiva na qual possa ser possível medir
regimes políticos, compará-los e diagnosticá-los. Os resultados da análise
demonstraram que altos níveis de democracia liberal estão correlacionados com
controle social da violência e com menores indicadores de impunidade. A
democracia depende de instituições que perpassam aquelas que passam pelo crivo
das eleições. Inclusive, estas eleições dependerão de instituições coercitivas accountable para o sucesso de sua
perenidade. Enquanto as instituições responsáveis pela capacidade estatal do
controle da violência e da impunidade não avançarem na América Latina, teremos a
continuidade de democracias meramente delegativas nas quais a cidadania é um
produto raro e as eleições produzem péssimos representantes descompromissados
com as repúblicas.
Comentários
Postar um comentário