80 tiros!





Por José Maria Nóbrega – cientista político e professor da UFCG.

Foram 80 tiros de fuzil! Mais uma ação desastrosa da (in)segurança pública brasileira. Aliás, mais uma ação que nos coloca, novamente, a questão das relações civil-militares brasileiras. Em alguma democracia avançada existe forças de guerra a praticar policiamento ostensivo? A resposta é simples: não! Só em regimes autoritários as forças armadas são usadas dessa forma. 
Mas, o Brasil é uma democracia “consolidada”, como afirma a maioria dos cientistas políticos brasileiros. O vazio conceitual de tais cientistas, que bebem em teorias míopes sobre a definição mínima de um regime democrático, é característico. No entanto, um regime político democrático não se consolida onde prevalece violência descontrolada, sobretudo quando essa violência é praticada por quem devia controlá-la.
A democracia vai além dos seus atributos eleitorais, necessita, para a sua consolidação, do controle efetivo dos civis eleitos sobre as suas forças armadas; do controle – através de instituições coercitivas robustas republicanas – da violência e, da sua “irmã siamesa”, a corrupção. Em um real estado democrático de direito, forças armadas não são usadas em atividades internas de segurança pública, não há militarização das atividades de segurança pública e os agentes (civis, claro, pois em democracias sólidas são os civis que tomam as decisões de políticas públicas, incluindo aí a segurança pública) são responsivos com os cidadãos que usam os serviços públicos (ao público, servido por um servidor público investido de autoridade legal para isso). As políticas públicas de segurança devem ser administradas por civis, com instituições controladas por civis e que respeitem os preceitos básicos da cidadania. O irrestrito respeito ao monopólio da força exercido pelo estado no qual os seus agentes são accountables, ou seja, tomam decisões tendo como condutor o império da lei. Lei esta que tem como norteador a constituição democrática de forte teor liberal.
A raiz de nossos problemas institucionais na segurança pública, no entanto, está na condução da formatação de nossa Carta Magna. Esta é uma instituição híbrida, pois, ao mesmo tempo que nela há as garantias do componente liberal que uma democracia sólida exige, há entulhos autoritários incompatíveis com a democracia liberal moderna. Os nossos constituintes não superaram o entulho autoritário do regime militar (1964/1985) e mantiveram as forças armadas como garantes da lei e da ordem interna (art. 142). Inclusive, a Polícia Militar é força auxiliar e reserva do Exército (art. 144), sendo ela a principal instituição coercitiva da segurança pública brasileira. Uma força policial preparada para o conflito, ou seja, para a guerra, o confronto ao inimigo.
Nosso modelo de segurança pública traz em seu bojo o militarismo. As forças militares são recrutadas e treinadas para o combate. O confronto ao inimigo, os moradores das comunidades, destituídos de proteção estatal. Não há nada parecido em democracias consolidadas. 
O caráter militar condiciona as instituições à lógica da guerra, da manutenção da “ordem” pelo uso incondicional da força desmedida. As mortes decorrentes de intervenções policiais superaram 18 mil almas entre 2013 e 2017 (Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2018). O incremento percentual nesse período foi de 132,5% no comparativo 2013/2017 (cf. gráfico 09. Gráfico retirado de NÓBREGA JR., 2019: 101). 

Há uma correlação positiva entre mortes decorrentes de intervenções policiais com o incremento dos homicídios dolosos. Observando a figura 01 abaixo, dá para perceber os números crescentes no mesmo período. A violência policial/das instituições coercitivas (responsáveis pela aplicação do império da lei sob o monopólio legítimo da força) usa de força desmedida, acreditando ser esse o remédio para o controle da violência, mas o incremento percentual de 9,4% nos homicídios, no mesmo comparativo (2013/2017), demonstra que essa política é irracional, além de inconstitucional e agressora de direitos.

Figura 01. 


Fonte: Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2016/2017/2018/2019).

Aplicando uma correlação matricial entre os dois conjuntos de dados (quadro 01), percebe-se o nível elevado de correlação entre as mortes decorrentes de intervenção policial e as mortes violentas intencionais. Praticamente, 100% de  correlação entre os dois conjuntos de dados. A violência policial não contribui em nada para o controle da violência.

Quadro 01. Homicídios dolosos  | mortes decorrentes de intervenção policial | correlação do conjunto de dados

Fonte: Anuário Brasileiro de Segurança Pública (vários anos).

A teoria afirma que a violência do estado (e dos seus agentes, claro) está conectada à violência urbana. Os dados demonstram que a teoria está correta, confirmada empiricamente. As ações ilegais do estado na tentativa de controlar a violência e a criminalidade trabalham contra este controle. Na verdade, a violência policial/das instituições de controle social da violência (instituições coercitivas) terminam por produzir mais violência no cenário geral da criminalidade. 

A democracia brasileira, por fim, é um regime político no qual as eleições ocorrem corriqueiramente, mas o regime não se consolida. As eleições produzem, geralmente, governos irresponsivos, produtores ineficazes de políticas públicas em todos os setores, que na segurança pública mostra a sua face mais autoritária. Geralmente, os cientistas políticos desconectam o sistema político da violência e da criminalidade. Mas, a conexão causal entre impunidade, violência e corrupção é uma realidade latino-americana. O Brasil é um país geralmente bem avaliado em seu processo eleitoral. Mas, o estado que deveria sustentar o cenário político de tomada de decisão é unaccountable. Ou seja, não consegue coagir os atores eleitos pelo povo na condução do estado democrático de direito. Tanto é assim, que os indicadores de confiança nas instituições políticas representativas são lastimáveis. A figura 02 abaixo representa o quanto de incredibilidade os representantes eleitos pela democracia eleitoral brasileira desfrutam perante o seu eleitorado. Simplesmente, o segundo pior da América Latina, segundo pesquisa efetuada pelo Latinobarómetro em 2017, perdendo apenas para o Paraguai.

Figura 02.



Dessa forma, a conduta dos gestores públicos está conectada com a ineficácia das instituições coercitivas na garantia da lei e da ordem sob o estado democrático de direito. O fuzilamento que inicia este texto é o exemplo mais claro disso, mais uma página sangrenta dessa (in)segurança pública estúpida que nós insistimos em defender.
Sistema político corrupto, impunidade na condução da segurança pública e violência descontrolada são faces da mesma moeda, o que coloca o Brasil entre os países mais violentos e desiguais do mundo, não obstante ter uma das maiores cargas tributárias do mundo e eleições das mais transparentes e seguras. Enquanto acreditarmos que a democracia é um mecanismo de escolha de governos desconectado do estado de direito, um estado usável nas palavras do cientista político argentino Guillermo O´Donnell, continuaremos a acreditar em teorias incompletas e em democracias iliberais, conforme o conceito de Larry Diamond.

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