Segurança Pública e Democracia




Por José Maria Nóbrega – Doutor em Ciência Política pela UFPE

Estamos presenciando um momento peculiar na segurança pública brasileira. A intervenção federal com o uso das Forças Armadas assumindo “as rédeas” da segurança pública (interna), no Rio de Janeiro, dispositivo nunca dantes usado pelos governos democráticos, mostra a peculiaridade da situação. Discursos políticos e análises eleitorais à parte, a segurança pública não pode ser discutida sem antes de uma conexão conceitual entre esta política de estado e o que entendemos como democracia contemporânea.

O debate teórico da democracia eleitoral dista oitenta anos, quando o economista austríaco Joseph Schumpeter definiu o seu conceito de democracia como um método de escolha dos governantes. A partir de sua obra fundadora deste conceito, a Ciência Política passou a navegar confortavelmente em análises comparativas de regimes políticos nas quais a exigência do método de escolha (eleições diretas e pluripartidárias) seria mais que suficiente para definir que em determinado país existia uma democracia consolidada.

Muitos navegaram confortavelmente nessa vertente teórica com grande sucesso empírico. Robert Dahl, em Poliarquia, e Arend Lijphart, em Modelos de Democracia, são apenas dois exemplos famosos. A democracia eleitoral dominou a cena num debate sobre transições democráticas na América Latina, sobretudo nos regimes pós-ditaduras militares. No limite, os cientistas políticos da região passaram a avaliar os processos transitórios pela vertente schumpeteriana ou dahlsiana. Onde as eleições pluripartidárias foram implementadas o sucesso democrático era certo!

O debate é muito mais sofisticado, mas vou parar por aqui nesse campo e entrar com a crítica pertinente do cientista político argentino Guillermo O´Donnell, que bebia frequentemente da fonte schumpeteriana, ao que estava “escondido” na teoria democrática da escolha racional. Ele afirmou, em 1999 na sua publicação seminal na Revista Dados (uma das mais importantes nas ciências sociais), que os critérios exigidos para o sucesso do método de escolha schumpeteriano era muito mais complexo do que a maioria dos cientistas políticos achava e que o aprofundamento em cima daqueles critérios – sobretudo os que dizem respeito a garantias de direitos políticos – era por demais desconfortável para o analista político. Em outras palavras, no contexto de muitas novas poliarquias – democracias jovens na América Latina e no Leste europeu – tais garantias eram por demais frágeis.

Daí o conceito de democracia eleitoral ser tão frágil sem uma análise do estado de direito (ou estado democrático de direito) que entra nas garantias mais básicas de uma sociedade liberal, como os direitos civis e políticos (vida, bens, liberdade), que engloba muita coisa que, em países que passaram e completaram seu processo civilizador (conforme os ensinamentos de Norbert Elias) já davam como certo e prescindível de discussão.

Nesses países chamados originários por O´Donnell (1999. Teoria Democrática Contemporânea e Política Comparada. Revista Dados. São Paulo) o controle interno da violência pelo aparato institucional coercitivo do Estado, com garantias constitucionais das liberdades liberais clássicas respeitadas por elas, era algo dado mesmo antes do método de escolha schumpeteriano, o que, notadamente, em muitos países de novas poliarquias não tinham resolvido.

Violência homicida fora de controle, crime organizado dentro e fora do estado, sistema carcerário sob comando dos criminosos, zonas marrons sob o comando do crime nas grandes e médias cidades, dentre outros fatores, não eram percebidos pelos teóricos schumpeterianos que passaram a afirmar que, não obstante toda a violência urbana no país, o sistema político – leia-se: a relação Executivo-Legislativo – estava em ordem e que a democracia ia muito bem!

Segurança Pública nunca entrou na agenda setting do debate teórico e empírico da qualidade da democracia. Mas, ela mostra-se imprescindível para a garantia do sistema eleitoral, como já vimos desde o início da democracia eleitoral brasileira, por exemplo. Passados trinta anos da redemocratização e da formatação da Constituição Federal de 1988, as eleições ocorrem regularmente no país, mas os eleitores se sentem cada vez menos garantidos em seus direitos mais básicos, como o direito à vida e aos seus bens.

A crise na segurança pública brasileira não é uma crise pontual desta política pública, mas uma crise dentro do regime político democrático. Uma crise nas garantias mais básicas de cidadania e numa total desagregação dos governos no controle do crime. As tomadas de decisão atabalhoadas e os resquícios autoritários institucionais que preservam as Forças Armadas como garantes da lei e da ordem interna são tão transparentes como água de piscina.

O processo transitório no Brasil,  e em muitos países que passaram por ditaduras militares, implementou democracia eleitoral sem, contudo, resolver a questão fundamental da segurança pública, ou seja, da segurança dos eleitores. As práticas institucionais formais e sociais das instituições coercitivas pouco mudaram e a face horrenda disso terminou refletindo na violência crescente que atinge os mais vulneráveis, moradores das periferias.

As polícias em ciclo divididos de policiamento, a falta de cooperação entre as polícias civis e militares, a total falta de planejamento estratégico na maioria das unidades federativas, a incongruência entre os planos nacionais e as práticas locais, a ingerência no sistema carcerário, o domínio das periferias pelos marginais violentos, o uso frequente das Forças Armadas fazendo papel de polícia, tudo isso foi mais enfático do que a desigualdade social como causador do crescimento da violência e da criminalidade no Brasil nesses trinta anos de democracia, já que a desigualdade social diminuiu exponencialmente no período.

As eleições com seus dispositivos foram insuficientes para instalarmos um regime democrático que garanta direitos. Ora, mas os direitos básicos estariam na raiz do estado moderno mesmo antes do método de escolha de governantes. O caminho brasileiro, e em boa parte dos países de novas poliarquias, foi inverso. Consolidaram eleições conforme o método, mas sem as prerrogativas necessárias para a superação do regime autoritário.


A segurança pública precisa do aparato dos direitos de cidadania inseridos implicitamente no conceito de democracia para ser bem-sucedida. Não existe democracia eleitoral, ou poliarquia, sem liberdade de imprensa, liberdade de expressão, acesso a justiça igualitária, etc., mas, também, não existe democracia onde o medo da morte violenta impera de forma tão contundente. Por isso, onde há democracia a segurança pública é o primeiro bem comum ao qual uma sociedade civilizada tem acesso. Pelo que tenho visto, o caminho para a consolidação da democracia ainda é muito longo!

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