Mais que uma Hiroshima

As políticas inteligentes, que usaram o Estatuto, salvando 30 mil vidas, são referência na criminologia internacional. Mas há nova tentativa do lobby da bala em acabar com ele

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O Estatuto do Desarmamento foi assinado no fim de 2003. Ele colocou nas mãos das polícias, das Secretarias de Segurança Pública e dos governadores instrumentos importantes para reduzir as mortes por armas de fogo, em geral, e os homicídios, em particular. Em alguns estados, o Estatuto foi bem usado; mas na grande maioria, não. São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais (durante oito anos), Pernambuco e, mais recentemente, o Espírito Santo, fizeram bom uso do Estatuto. Os resultados se medem estatisticamente, mas lembro que essas cifras frias significam vidas salvas ou vidas perdidas. Eu e Daniel Cerqueira mostramos em artigo que, no Brasil como um todo, aproximadamente 121 mil vidas foram salvas pelo Estatuto.

As armas de fogo também castigaram o nosso estado. Entre 1980 e 1995, cresceram aceleradamente: em 1980 houve 2.622 mortes; em 1995, 7.746. Um aumento de mais de cinco mil mortes. Naqueles 16 anos, foram mortas 84.427 pessoas com armas de fogo no Rio de Janeiro. Mais do que os mortos em Hiroshima. Uma carnificina!

O sistema de classificação mudou em 1996, mas a matança continuou: de 1996 a 2003, quando foi assinado o Estatuto, as mortes por armas de fogo continuaram a crescer; a cada ano morriam 115 pessoas a mais do que no anterior.

Em 2004, o Estatuto modificou o panorama: as mortes, que haviam crescido tendencialmente durante 23 anos, baixaram de 2004 a 2014. Em 2003 (antes do Estatuto) foram 7.090; em 2014, 2.228. Foram salvas muitas vidas. Vitória da vida sobre a morte!
Qual a tendência desde 2004? Cada ano, há 436 mortes a menos do que no ano anterior. Só no primeiro ano foram salvas 551 vidas, 115 que não foram somadas mais 436, que foram subtraídas à morte. Em 11 anos, mais de 30 mil vidas salvas (30.100) no nosso estado, graças à combinação de políticas de segurança inteligentes e às facilidades oferecidas pelo Estatuto. Uma bem-vinda inversão! Em 2014, voltamos ao patamar de 1987, quase 30 anos antes! Essa curva vale para os homicídios também. Até 2004 a tendência era de crescimento das mortes por homicídio mas, a partir de 2004, passaram a diminuir.
Os ganhos em vidas humanas podem ser mais bem aquilatados comparando a projeção da tendência anterior ao Estatuto com os dados reais posteriores a ele. A previsão era de quase 62 mil mortes, mas morreram 33 mil. Contudo, as vidas poupadas se concentraram a partir de 2007: somente nesses oito anos foram salvas 28.624 vidas, 95% do total.


A junção entre políticas de segurança inteligentes e o Estatuto tem benefícios multiplicativos.

Diferentemente do Brasil como um todo, no Rio de Janeiro, as mortes por armas de fogo decresceram e não voltaram a crescer. Mas ainda falta muito para sermos um estado fora da faixa da vergonha em crimes e violências.

Comparemos essas cifras com um parâmetro impressionante: desde 1980 morreram 190 mil pessoas por armas de fogo no nosso estado. Muitos de nós convivemos, durante anos, com o fantasma de uma guerra nuclear. A devastadora bomba atômica, lançada sobre Hiroshima, deixou perto de 70/80 mil mortos. As armas de fogo mataram no Rio de Janeiro muito mais do que duas bombas atômicas, e nós não vimos.
Concluindo: o Rio de Janeiro vive vários paradoxos. As políticas inteligentes, que usaram os benefícios do Estatuto, salvando 30 mil vidas, já são referência na criminologia internacional. Porém, há nova tentativa do lobby da bala em acabar com ele pelo mais torpe dos motivos: dinheiro.

De um lado, instituições, como as UPPs, que salvaram muitas vidas nas comunidades, como demonstraram Ignácio Cano, Doriam Borges e Eduardo Ribeiro; do outro, uma campanha do próprio tráfico, anunciada há mais de três anos, para retomar o território perdido, usando violência contra a polícia e o descrédito contra as UPPs; de um lado, um Estatuto e políticas inteligentes que salvam vidas; do outro lado, uma legislação e práticas judiciais medievais e irresponsáveis que permitem que homens jovens, até crianças, circulem com armas cortantes e perfurantes, em qualquer lugar, assaltem e matem cidadãos. São práticas indefensáveis, que permitem que alguém com 15 passagens pela polícia por assalto, trafico e roubo estivesse solto, livre para matar. E matou.
Quem se responsabiliza pela morte de Jaime Gold?

Há mais: para cada vítima fatal, há muitas vítimas ocultas, familiares e amigos, marcados pela dor incomensurável que sentirão durante anos e anos. Ironicamente, as vítimas, primárias e secundárias, estão conspicuamente ausentes dos discursos de todos os lados nos debates sobre o Estatuto e sobre a maioridade penal. Não são sequer mencionadas. Foram vaporizadas, como as vítimas de Hiroshima e Nagasaki.
Contradições do Rio de Janeiro.

Gláucio Soares é pesquisador do Iesp/Uerj

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