A ruptura democrática de 1964 e o estado de direito na Nova República
José Maria Nóbrega Jr.* – Professor de Ciência Política da
Universidade Federal de Campina Grande – PB
Em passagem dos cinquenta anos do chamado “Golpe Militar” de
1964 muito tem se falado, escrito, debatido e discutido nas redes sociais, na
imprensa livre e nas universidades. Muito do que tem se dito está envolto em
grande emoção e é marcado por debates acalorados, em sua maioria com forte viés
maniqueísta, onde os defensores da resistência ao regime de exceção distribuem
insultos aos torturadores do antigo regime autoritário e os defensores da
chamada “Revolução de 1964” defende o indefensável em nome de certa
“moralidade” às avessas. Muito pouco se discute do ponto de vista da análise
política, ou seja, da perspectiva diversa que envolve um período ainda tão
próximo e tão marcadamente violento e excludente politicamente. Foi retrocesso
politico o que ocorreu no período entre 1964 e 1985? Não dá para ter dúvidas
que sim. Por outro lado, o que podemos tirar dessa lição? São muitas leituras,
mas pouco debate em torno do desenho das instituições do período somado a
poucos estudos sobre o comportamento dos principais atores políticos daquela
época. É nesse caminho que pretendo tecer algumas linhas.
O que aconteceu na década de sessenta no mundo no qual o
Brasil estava envolvido? Naquele período a radicalização do conservadorismo
provocado pelo contexto da Guerra Fria influenciou decisivamente no
comportamento dos principais atores políticos que estavam no comando das
máquinas públicas nos diversos regimes políticos, inclusive nos países
cêntricos. Os EUA eram governados por elites conservadoras que temiam o avanço
do comunismo que foi endossado como forma de governo e de sociedade na Ilha de
Cuba. A Revolução Cubana precisava ser estancada em sua evolução dentro da
América Latina. Região esta até então de pouca atenção dispensada pelos
norte-americanos. Contudo, o conservadorismo político enraizado nos dois
partidos políticos majoritários da democracia estadunidense corroborou para
moldar o comportamento dos atores políticos chefes de governo dos EUA em
relação a sua política externa com os países de seu “quintal”. Ora, Cuba era
quintal dos EUA e passava por mudanças radicais patrocinadas pela principal
potência que rivalizava o poderio hegemônico com os EUA naquele período, a
URSS. Esta, depois de enviar os mísseis em 1962 para a Ilha de Fidel Castro,
demonstrava, desde a Guerra das Coreias no início da década de cinquenta, que
queria fatiar o mundo em esferas de influência tentando limitar drasticamente a
influência norte americana, inclusive na América Latina. A Operação Condor e os
acordos nos bastidores entre os EUA e os diversos quadros políticos
conservadores dos países latino americanos levaram muitos desses países a
executarem mudanças bruscas em seus regimes políticos, instalando modelos
autoritários de governos limitadores das liberdades individuais em nome da luta
contra a “praga” do comunismo. Esse fator foi uma das variáveis as quais
influenciaram no escalonar da ruptura que vingou no Brasil na década de
sessenta e entrou nas décadas de setenta e oitenta.
Como era o nosso regime político antes da ruptura autoritária?
O Brasil vivia sob um regime político semidemocrático, ou seja, tínhamos uma
estrutura institucional pluripartidária estável – com treze partidos políticos
disputando os pleitos eleitorais nas três esferas da Federação – com eleições
livres e relativamente limpas com sufrágio limitado (Por exemplo: nas eleições
municipais de 1962 a população eleitoral brasileira era de 18.496 milhões para
uma população de 75.695 milhões, o que equivalia a 24,5% da população
brasileira [Fonte: TSE. Dados Estatísticos, 1973 apud Lavareda, 1991]).
Diferente do que muitos cientistas sociais afirmam, a democracia representativa
brasileira era robusta com níveis de disputa partidária similar a países de
democracias políticas mais antigas. Não havia, nem de longe (como afirma o
atual Senador da República Pedro Simon), previsões as quais o Brasil
atravessaria um retrocesso institucional em seu modelo de democracia. Mas, as
circunstâncias históricas externas e internas favoreceram a interrupção da
democracia brasileira. A democracia como método de escolha não era (e não é)
suficiente para consolidar um regime político democrático. Na lacuna desse
regime, em suas zonas marrons, foram criadas as condições para a instalação do
regime de exceção em nossas plagas.
Quais foram as condições institucionais para a mudança
drástica de modelo político no Brasil? Sabe-se que João Goulart vinha tendo
sérias dificuldades de se legitimar perante o corpo político nacional. Com a
renúncia de Jânio Quadros em 1961 e a instalação do Parlamentarismo em 1963 a
força política do ator político Presidente João Goulart fora fragilizada. Não
havia uma leitura do modelo democrático e os partidos políticos rivalizavam de
forma intestinal em seus debates. Seguindo a linha de tantos cientistas
sociais, e daí destaco o professor Gláucio Soares em seu livro “Democracia
Interrompida”, os partidos eram frágeis do ponto de vista da articulação nos
bastidores. Outra tese, esta do professor Bolívar Lamounier, a estrutura
partidária diferia do sistema eleitoral. Apesar da disputa pelo voto do cidadão
se dá numa engenharia de estabilidade e de disputa pouco fragmentada, nos
bastidores dos partidos políticos existia uma rejeição muito forte ao nome de
João Goulart, somado isto ao anticomunismo implantado como uma verdadeira
“doença” que devia ser exterminada, ao exemplo de Cuba, os civis, em sua
maioria, se mostravam pouco articulados naquele processo. Dois atores políticos
civis foram fundamentais: primeiro, Magalhães Pinto, governador de Minas
Gerais, e de outro lado, Carlos Lacerda, governador do Estado da Guanabara,
foram atores que apoiaram uma solução armada ao espectro ameaçador do comunismo
latino-americano.
A instalação do regime de exceção no Brasil foi vista por
alguns conservadores como a manutenção da democracia representativa e da
economia capitalista. Só que eles não contavam que as Forças Armadas, ao chegar
novamente ao poder, dificilmente iria querer soltar a espada do poder de suas
mãos. Instalado o regime, as cassações, o fechamento do Congresso, a instalação
de governos estaduais sob intervenção, atos institucionais que cessaram as
liberdades civis e políticas, o Brasil entrou num período dos mais atrasados do
ponto de vista político e social de sua história.
No início até 1973, com o “milagre econômico”, o crescimento
estrutural provocado por uma política de substituição de importações com
endividamento externo em proporções astronômicas, o legado do regime militar
(da ruptura democrática) foi de maiores níveis de desigualdade de renda e
social, dívida externa estratosférica, inflação de mais de 200% ao ano e um
desgaste político e social nunca antes visto na história do país. A Ditadura
Militar, ou Regime Autoritário, sem entrar em peculiaridades conceituais,
deixou uma dívida social e econômica muito grande para a democracia em seu
ressurgimento a partir de 1984 com os movimentos sociais das Diretas!
O processo de descompressão tinha começado dez anos antes,
em 1974, no governo do General Ernesto Geisel. Descompressão esta em meio a uma
disputa intestinal entre os chamados “linha dura” com os moderados de dentro do
regime. Dos dois lados tinham civis e militares. A morte do jornalista Wladimir
Herzog dentro dos porões do DOI-CODI de São Paulo aterrorizou até o mais
insensível analista do período. A imagem do Herzog pendurado por uma corda a
uma altura de um metro e meio, com as pernas curvas, chocou a opinião pública
nacional e, sobretudo, internacional. O próprio presidente pressionou para
saber o que tinha realmente ocorrido, e a ala conservadora vinha mostrando
desequilíbrio o que fortaleceu os movimentos em prol do retorno da normalidade
democrática. A Lei de Anistia foi a resposta do governo seguinte, do General
Figueiredo. Anistiando todos aqueles que pegaram em armas contra o regime e,
por sua vez, “perdoando” os excessos dos agentes do estado que praticaram
torturas das mais desumanas.
Período violento, o regime militar foi mais violento que a
nossa atual semidemocracia? A resposta é, infelizmente, não. Do ponto de vista
da violência política, sim, o regime foi o mais violento, até por que não se
tem conhecimento, desde 1985, de prisões por divergências políticas em nosso
país. Contudo, do ponto de vista da violência urbana e rural, o Brasil se
tornou bem mais violento. Os crimes de tortura e assassinatos de ontem são
ofuscados pela criminalidade violenta que grassa as principais cidades do país
em um movimento de ascendente que coloca em xeque a própria democracia. Até que
ponto uma democracia suporta índices de homicídios tão elevados como os encontrado
em suas regiões, estados e municípios? Nós não temos zonas marrons, a grande
parte das cidades mais importantes, mais populosas, com os maiores colégios
eleitorais, com o maior dinamismo econômico, são também os locais mais
violentos, o que fragiliza o estado de direito na Nova República. Uma
democracia não se sustenta com violações constantes dos direitos civis.
Superamos o regime militar de vez? Acredito que sim.
Dificilmente teremos um regime político com aquele formato. As Forças Armadas
saíram de vez do quadro político brasileiro? Não. As FFAA continuam a demandar
poder. Dentro do Ministério da Defesa, na Agência Brasileira de Inteligência,
no modelo de segurança pública (militarizado) e até como garantes da lei e da
ordem democráticas (artigo 142 da Constituição de 1988). As FFAA saíram do
governo, mas mantem poder e estão de vigília em relação à manutenção da lei e
da ordem. É só ver quem está no comando da ocupação da Favela da Maré no Rio de
Janeiro. Num momento de grandes manifestações cobrando do governo por políticas
públicas de qualidade, é importante o governo de plantão ter as Forças Armadas
ao seu lado.
* José Maria Nóbrega Jr é autor de Semidemocracia
brasileira: as instituições coercitivas e práticas sociais. Editora Nossa
Livraria. Recife. 2009 e Homicídios no Nordeste. Dinâmica, relações de
causalidade e desmistificação da violência homicida. ED.UFCG. Campina Grande.
PB. 2012.
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