Estado de Direito, Democracia e Direito de Cidadania: exigem tratamento jurídico-formal igualitário, mas é o nosso caso?
José Maria Nóbrega Jr. – Professor de Ciência Política do CDSA/UFCG.
Coordenador do NEVU (Núcleo de Estudos
da Violência da UFCG).
Num contexto onde a cidadania se mostra marcada por
uma divisão social, onde esta divisão, ou distinção é percebida pelos agentes
da lei como fazendo parte de uma realidade estrutural na qual tratar de forma
desigual os desiguais é “natural”, encontra-se desenvolvido o aparato legal do
Estado de Direito no Brasil.
Desde o inquérito policial até o julgamento e a
condenação ou absolvição, o indivíduo é tratado conforme sua posição social
dentro de uma escala de valores percebida pelos agentes estatais do aparato
legal de justiça. Verifica-se um grande distanciamento entre um modelo
hierarquizado e inquisitorial de justiça, no Brasil, e outro modelo,
acusatorial, refletido no modelo anglo-americano de justiça. Este sistema
nasceu e foi legitimado pela vontade popular, garantido pela democracia liberal
estadunidense. No Brasil, ocorreu o inverso. O sistema processual foi formado,
desde seus princípios, sob a égide do Estado – produzido pela elite brasileira
– numa perspectiva de dominação e controle da sociedade. Ou seja, do todo sobre
as partes.
As mudanças históricas ocorridas no Brasil em seus
mais de 500 anos em pouco mudou a essência da sociedade e, por sua vez, das
instituições responsáveis pelo estado de direito. Na passagem da Monarquia para
a República houve mudança de elites. Uma elite agrária e burocrática foi
substituída por um patriciado rural, este composto, sobretudo, pela elite
cafeeira paulistana. No que diz respeito à cidadania, não houve mudanças. A
participação eleitoral continuou tênue, os direitos civis resumidos à liberdade
de culto e os direitos sociais permaneceram restritos. A perspectiva liberal
brasileira estava ligada, apenas, ao aspecto econômico.
A legislação social e trabalhista patrocinada pelo
Estado Novo varguista pariu um arcabouço de direitos sociais/trabalhistas
extenso. Contudo, diferentemente do ocorrido no modelo anglo-saxônico – onde os
direitos civis surgiram antes dos direitos políticos e sociais na Grã-Bretanha,
no século XIII -, os direitos sociais surgiram primeiro, conquanto não houvesse
contradição entre legislação social e repressão política.
No período democrático de 1945-1964 os direitos civis foram
mantidos como atributo da minoria do povo brasileiro. A carência social e a
imaturidade política levaram o país a mais uma ditadura. O regime militar
(1964-1985) foi assistencialista, elencando direitos sociais para a maioria
excluída ao custo da extinção dos direitos civis que atingia mais a classe
média educada (a minoria que perdeu tais direitos). Já o movimento de luta
armada, não se mostrou eficaz, pois ia muito aquém da realidade social
brasileira. Na verdade, movimentos desse tipo se mostraram ineficazes como
método de mudança político-institucional na história contemporânea.
Desencantada com o regime – o fim do crescimento
econômico, do dito “milagre brasileiro”, a isso contribuiu – a classe média
protagonizou o movimento das “diretas” que influenciou um intenso movimento por
abertura política em toda a sociedade civil. O entusiasmo ingênuo levou todos a
pensar que a simples mudança de regime político seria suficiente para resolver
os complexos problemas do país, sobretudo à exclusão social. A transição
tutelada mostrou quais eram as verdadeiras intenções das elites políticas
brasileiras, elas militares e/ou civis. Uma base popular, organizada e
participativa, fundamental para a construção e consolidação de uma cidadania
civil e política não existiu. A justiça social não veio, e a cidadania em seu
aspecto mais simplório não se fez concretizar.
O caráter elitista e hierárquico da sociedade e das
instituições brasileiras tem raízes nessa cidadania pouco ativa. Os direitos
civis aparecem como aqueles que são imprescindíveis para a consolidação do estado
de direito democrático. A cláusula da igualdade jurídica aparece como o mínimo
fator de igualdade em uma sociedade desigual, já que num sistema de mercado a
desigualdade é inevitável.
A desigualdade jurídica no Brasil se formou no
contexto do Estado-Nação. A estrutura baseada no trabalho escravo e na grande
propriedade alijou a maioria do povo brasileiro da construção de sua própria
cidadania. Princípios liberais inseridos nas constituições brasileiras, desde
1824, não foram suficientes para o implante do componente liberal em nossas
plagas.
A cidadania no Brasil teve sua formação numa
perspectiva inversa quando comparada ao que aconteceu no modelo anglo-saxônico.
A base jurídica desse modelo nasceu da sociedade civil. A cláusula da Common law inglesa da Idade Média
perpassou historicamente, dando prerrogativas aos cidadãos em contraposição ao
poder absoluto do Estado. Este foi mitigado por forças que advieram da
sociedade civil. Inicialmente, da base aristocrática e, posteriormente, de
todos os cidadãos ingleses. Os direitos civis de serem julgados pelos seus
pares e de terem garantido suas propriedades iniciaram a cidadania
anglo-saxônica como um fator nascente da sociedade e não do Estado. Os direitos
políticos e sociais vieram depois, como procedimentos de pressão da sociedade
por maior participação política nas arenas decisórias, consolidando a
democracia inglesa.
Já no Brasil, o mínimo jurídico comum se mostrou
bastante limitado. A essência da igualdade jurídica, princípio básico da
cidadania, aparece incorporada na doutrina jurídica brasileira num discurso elitista
quer o perpassa, influenciando as instituições políticas. Essa essência se
consuma na forma desigual de tratar os desiguais a partir do momento em que se
desigualam. O positivismo da doutrina
influenciou a concepção dos formadores do Poder Jurídico brasileiro no início
do século XX. Na perspectiva daqueles doutrinadores do direito, o cidadão
comum, ou o povo, não teria condições de arbitrar seus conflitos, dessa forma a
formatação jurídica no que diz respeito ao mínimo jurídico comum de ser julgado
pelos seus pares, demonstrou um caráter inquisitorial, reflexo de uma estrutura
social hierarquizada. O Estado teria um poder
eclesiástico, dominando a cena no processo de administração dos conflitos
na sociedade, diminuindo o individualismo do modelo anglo-americano e
potencializando o poder da sociedade e do estado sobre o indivíduo.
Como a cidadania não se mostrou ativa em seu
componente liberal e, além do mais, os direitos sociais e políticos nasceram
numa conjuntura advinda do centro do poder político, a ação cidadã no Brasil se
mostrou rarefeita. Isso teve reflexo em suas instituições políticas e coercitivas.
Dessa forma, o Estado de Direito não se consolida, como, também, o regime
político democrático, pois a forma de tratamento desigual se infiltra nas
instâncias jurídicas do país.
Como exemplo desse tratamento tem-se o quesito dos
crimes contra a vida que são de
exclusiva competência do júri (art. 153, parágrafo 18, Emenda Constitucional nº
1). O Código de Processo Penal estatui que se houverem outros crimes em conexão
com aqueles que estão sob o poder jurisdicional do júri, todos serão julgados
por este (art. 78, I, Código de Processo Penal). Entretanto, o Código Penal não
classifica homicídio com intenção de roubo (latrocínio) e sequestro seguido de
morte da vítima entre os crimes contra a vida (art. 157, parágrafo 3, e 159,
parágrafo 3). Os crimes contra a vida são somente os crimes tipificados pelos
arts. 121 a
128: homicídio, aborto, infanticídio, instigação ao suicídio e genocídio.
Estes, portanto, são os crimes da alçada do júri, segundo a lei processual. O
latrocínio e o sequestro seguido de morte da vítima são julgados por juiz
singular. Não há qualquer razão para que o latrocínio e a morte de vítima sequestrada
sejam excluídos da competência do júri por serem classificados como crimes
contra a propriedade e não contra a vida. A única explicação para os
tratamentos desiguais estipulados pela Lei processual parece residir no “tipo”
de criminoso que se presume estar envolvido no latrocínio e no sequestro: os
marginais, os criminosos violentos pertencentes às classes mais baixas.
No contexto
histórico da formação da sociedade brasileira ficou ausente o componente homogeneizador
que encontramos, por exemplo, na sociedade francesa. Esse componente fora
responsável pela efetividade da “dignidade” entre os seus indivíduos, cidadãos
franceses. Essa efetividade fora compartilhada pelas classes que lograram
homogeneizar a economia emocional de todos os seus membros numa medida
significativa, que parece ter sido o fundamento mais profundo do reconhecimento
social infra e ultra-jurídico, o qual permitiu a eficácia social da regra
jurídica da igualdade, ou seja, de uma noção moderna de cidadania. A dimensão
da “dignidade” compartilhada, no sentido não jurídico de “levar o outro em
consideração”, é que tem que estar disseminada de forma efetiva numa sociedade
para que possamos dizer que, nessa sociedade concreta, temos a dimensão
jurídica da cidadania e da igualdade garantida pela lei. Para que haja eficácia
legal da regra de igualdade é necessário que a percepção da igualdade na
dimensão da vida cotidiana esteja efetivamente internalizada na sociedade. Mas,
isso não parece ser o nosso caso!
Muito bom!
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