Estado de Direito, Democracia e Direito de Cidadania: exigem tratamento jurídico-formal igualitário, mas é o nosso caso?

José Maria Nóbrega Jr. – Professor de Ciência Política do CDSA/UFCG. Coordenador  do NEVU (Núcleo de Estudos da Violência da UFCG).

Em Regimes Democráticos o seu componente liberal se encontra fortalecido no respeito integral aos direitos civis. No caso da Constituição brasileira de 1988, podemos encontrar tal componente em seu artigo 5º. O princípio da isonomia jurídica é o que garante a efetiva aplicabilidade da igualdade entre os homens e mulheres. A formação da cidadania no Brasil tem em sua história a construção de uma realidade que se distancia de uma sociedade de iguais. A tradição hierárquica prevalece na conjuntura estrutural da sociedade brasileira. Isso se encontra refletido em seu aparato de Justiça.
Num contexto onde a cidadania se mostra marcada por uma divisão social, onde esta divisão, ou distinção é percebida pelos agentes da lei como fazendo parte de uma realidade estrutural na qual tratar de forma desigual os desiguais é “natural”, encontra-se desenvolvido o aparato legal do Estado de Direito no Brasil.
Desde o inquérito policial até o julgamento e a condenação ou absolvição, o indivíduo é tratado conforme sua posição social dentro de uma escala de valores percebida pelos agentes estatais do aparato legal de justiça. Verifica-se um grande distanciamento entre um modelo hierarquizado e inquisitorial de justiça, no Brasil, e outro modelo, acusatorial, refletido no modelo anglo-americano de justiça. Este sistema nasceu e foi legitimado pela vontade popular, garantido pela democracia liberal estadunidense. No Brasil, ocorreu o inverso. O sistema processual foi formado, desde seus princípios, sob a égide do Estado – produzido pela elite brasileira – numa perspectiva de dominação e controle da sociedade. Ou seja, do todo sobre as partes.
As mudanças históricas ocorridas no Brasil em seus mais de 500 anos em pouco mudou a essência da sociedade e, por sua vez, das instituições responsáveis pelo estado de direito. Na passagem da Monarquia para a República houve mudança de elites. Uma elite agrária e burocrática foi substituída por um patriciado rural, este composto, sobretudo, pela elite cafeeira paulistana. No que diz respeito à cidadania, não houve mudanças. A participação eleitoral continuou tênue, os direitos civis resumidos à liberdade de culto e os direitos sociais permaneceram restritos. A perspectiva liberal brasileira estava ligada, apenas, ao aspecto econômico.
A legislação social e trabalhista patrocinada pelo Estado Novo varguista pariu um arcabouço de direitos sociais/trabalhistas extenso. Contudo, diferentemente do ocorrido no modelo anglo-saxônico – onde os direitos civis surgiram antes dos direitos políticos e sociais na Grã-Bretanha, no século XIII -, os direitos sociais surgiram primeiro, conquanto não houvesse contradição entre legislação social e repressão política.
No período democrático de 1945-1964 os direitos civis foram mantidos como atributo da minoria do povo brasileiro. A carência social e a imaturidade política levaram o país a mais uma ditadura. O regime militar (1964-1985) foi assistencialista, elencando direitos sociais para a maioria excluída ao custo da extinção dos direitos civis que atingia mais a classe média educada (a minoria que perdeu tais direitos). Já o movimento de luta armada, não se mostrou eficaz, pois ia muito aquém da realidade social brasileira. Na verdade, movimentos desse tipo se mostraram ineficazes como método de mudança político-institucional na história contemporânea.
Desencantada com o regime – o fim do crescimento econômico, do dito “milagre brasileiro”, a isso contribuiu – a classe média protagonizou o movimento das “diretas” que influenciou um intenso movimento por abertura política em toda a sociedade civil. O entusiasmo ingênuo levou todos a pensar que a simples mudança de regime político seria suficiente para resolver os complexos problemas do país, sobretudo à exclusão social. A transição tutelada mostrou quais eram as verdadeiras intenções das elites políticas brasileiras, elas militares e/ou civis. Uma base popular, organizada e participativa, fundamental para a construção e consolidação de uma cidadania civil e política não existiu. A justiça social não veio, e a cidadania em seu aspecto mais simplório não se fez concretizar.
O caráter elitista e hierárquico da sociedade e das instituições brasileiras tem raízes nessa cidadania pouco ativa. Os direitos civis aparecem como aqueles que são imprescindíveis para a consolidação do estado de direito democrático. A cláusula da igualdade jurídica aparece como o mínimo fator de igualdade em uma sociedade desigual, já que num sistema de mercado a desigualdade é inevitável.
A desigualdade jurídica no Brasil se formou no contexto do Estado-Nação. A estrutura baseada no trabalho escravo e na grande propriedade alijou a maioria do povo brasileiro da construção de sua própria cidadania. Princípios liberais inseridos nas constituições brasileiras, desde 1824, não foram suficientes para o implante do componente liberal em nossas plagas.
A cidadania no Brasil teve sua formação numa perspectiva inversa quando comparada ao que aconteceu no modelo anglo-saxônico. A base jurídica desse modelo nasceu da sociedade civil. A cláusula da Common law inglesa da Idade Média perpassou historicamente, dando prerrogativas aos cidadãos em contraposição ao poder absoluto do Estado. Este foi mitigado por forças que advieram da sociedade civil. Inicialmente, da base aristocrática e, posteriormente, de todos os cidadãos ingleses. Os direitos civis de serem julgados pelos seus pares e de terem garantido suas propriedades iniciaram a cidadania anglo-saxônica como um fator nascente da sociedade e não do Estado. Os direitos políticos e sociais vieram depois, como procedimentos de pressão da sociedade por maior participação política nas arenas decisórias, consolidando a democracia inglesa.
Já no Brasil, o mínimo jurídico comum se mostrou bastante limitado. A essência da igualdade jurídica, princípio básico da cidadania, aparece incorporada na doutrina jurídica brasileira num discurso elitista quer o perpassa, influenciando as instituições políticas. Essa essência se consuma na forma desigual de tratar os desiguais a partir do momento em que se desigualam. O positivismo da doutrina influenciou a concepção dos formadores do Poder Jurídico brasileiro no início do século XX. Na perspectiva daqueles doutrinadores do direito, o cidadão comum, ou o povo, não teria condições de arbitrar seus conflitos, dessa forma a formatação jurídica no que diz respeito ao mínimo jurídico comum de ser julgado pelos seus pares, demonstrou um caráter inquisitorial, reflexo de uma estrutura social hierarquizada. O Estado teria um poder eclesiástico, dominando a cena no processo de administração dos conflitos na sociedade, diminuindo o individualismo do modelo anglo-americano e potencializando o poder da sociedade e do estado sobre o indivíduo.
Como a cidadania não se mostrou ativa em seu componente liberal e, além do mais, os direitos sociais e políticos nasceram numa conjuntura advinda do centro do poder político, a ação cidadã no Brasil se mostrou rarefeita. Isso teve reflexo em suas instituições políticas e coercitivas. Dessa forma, o Estado de Direito não se consolida, como, também, o regime político democrático, pois a forma de tratamento desigual se infiltra nas instâncias jurídicas do país.
Como exemplo desse tratamento tem-se o quesito dos crimes contra a vida que são de exclusiva competência do júri (art. 153, parágrafo 18, Emenda Constitucional nº 1). O Código de Processo Penal estatui que se houverem outros crimes em conexão com aqueles que estão sob o poder jurisdicional do júri, todos serão julgados por este (art. 78, I, Código de Processo Penal). Entretanto, o Código Penal não classifica homicídio com intenção de roubo (latrocínio) e sequestro seguido de morte da vítima entre os crimes contra a vida (art. 157, parágrafo 3, e 159, parágrafo 3). Os crimes contra a vida são somente os crimes tipificados pelos arts. 121 a 128: homicídio, aborto, infanticídio, instigação ao suicídio e genocídio. Estes, portanto, são os crimes da alçada do júri, segundo a lei processual. O latrocínio e o sequestro seguido de morte da vítima são julgados por juiz singular. Não há qualquer razão para que o latrocínio e a morte de vítima sequestrada sejam excluídos da competência do júri por serem classificados como crimes contra a propriedade e não contra a vida. A única explicação para os tratamentos desiguais estipulados pela Lei processual parece residir no “tipo” de criminoso que se presume estar envolvido no latrocínio e no sequestro: os marginais, os criminosos violentos pertencentes às classes mais baixas.
 No contexto histórico da formação da sociedade brasileira ficou ausente o componente homogeneizador que encontramos, por exemplo, na sociedade francesa. Esse componente fora responsável pela efetividade da “dignidade” entre os seus indivíduos, cidadãos franceses. Essa efetividade fora compartilhada pelas classes que lograram homogeneizar a economia emocional de todos os seus membros numa medida significativa, que parece ter sido o fundamento mais profundo do reconhecimento social infra e ultra-jurídico, o qual permitiu a eficácia social da regra jurídica da igualdade, ou seja, de uma noção moderna de cidadania. A dimensão da “dignidade” compartilhada, no sentido não jurídico de “levar o outro em consideração”, é que tem que estar disseminada de forma efetiva numa sociedade para que possamos dizer que, nessa sociedade concreta, temos a dimensão jurídica da cidadania e da igualdade garantida pela lei. Para que haja eficácia legal da regra de igualdade é necessário que a percepção da igualdade na dimensão da vida cotidiana esteja efetivamente internalizada na sociedade. Mas, isso não parece ser o nosso caso!

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