HOMICÍDIOS DE MULHERES: CENÁRIOS DIVERSOS E COMPLEXOS
Além da violência doméstica, que representa quase metade dos casos de homicídios também em Pernambuco, o sexo feminino está exposto a outros tipos de agressões que entrecruzam gênero, raça e condições sociais e econômicas
Ana Paula Portella
Pesquisadora e doutoranda em Sociologia, UFPE
Pesquisadora e doutoranda em Sociologia, UFPE
Desafiar o senso comum não é tarefa das mais fáceis, especialmente quando tratamos de questões que tocam em nossos sentimentos de segurança e risco. A violência é uma dessas questões, cuja possibilidade de irromper na vida de qualquer um de nós nos leva a buscar e a aceitar explicações que, de algum modo, nos ajude a evitar a tragédia. Por si só, a existência de violência na sociedade não significa que essas situações sejam reconhecidas como tal. O processo de nomeação e atribuição de sentido a um ato violento depende de muitos fatores e, muito especialmente, do lugar que vítimas e agressores ocupam na sociedade. Assim, só nas três ou quatro últimas décadas é que as agressões sofridas pelas mulheres nas relações amorosas e familiares passsaram a ser reconhecidas como violência e como um problema social a ser tratado na esfera pública. Antes disso, a violência masculina era entendida como um direito e uma prerrogativa dos homens na chefia do grupo familiar, funcionando como uma espécie de 'corretivo' para que as mulheres se conformassem ao papel de esposas e mães. A mudança na percepção e na compreensão deste tipo de evento violento só foi possível graças à ação das próprias mulheres, especialmente por meio do movimento feminista, que denunciaram e nomearam como injustiça e crime algo experimentado pelas mulheres há séculos. Esse processo levou a mudanças na legislação e nas instituições públicas para lidarem com o 'novo' problema social. A Lei Maria da Penha é o exemplo mais recente de uma mudança decorrente deste processo.
Neste período, inúmeros estudos e pesquisas foram feitos em todo o mundo para identificar e caracterizar as formas de ocorrência da violência masculina contra as mulheres. A violência cometida pelo parceiro íntimo, assim, tornou-se emblemática de toda a violência cometida contra as mulheres, obscurecendo outras situações nas quais as mulheres perdem a vida e em que também atuam fatores associados às desigualdades entre homens e mulheres. É verdade que um dos diferenciais mais importantes das mortes violentas é o fato de que o ambiente doméstico e as relações familiares e amorosas são contextos muito mais perigosos para as mulheres do que para os homens. No entanto, em vários países do mundo, estudos indicam que cerca de metade das mulheres que são assassinadas o são em circunstâncias distintas das relações íntimas e/ou domésticas.
No Brasil e em Pernambuco, as principais vítimas dos homicídios são jovens negros, do sexo masculino, com pouca escolaridade e baixa renda. Também no caso das mulheres é maior a probabilidade de vitimização entre as negras e as pobres. Além disso, os homicídios – tanto de homens quanto de mulheres – concentram-se em áreas onde são precárias as condições sociais e onde a qualidade de vida é acentuadamente degradada. As mulheres que aí residem estão expostas a múltiplas vulnerabilidades, possivelmente encontrando inúmeras dificuldades para evitar ou sair de uma situação de violência doméstica que se agrava ou de outras situações violentas decorrentes de conflitos interpessoais. Em Recife, em 2008, 88% das mulheres assassinadas em Recife eram pardas ou pretas e, em 2009, 47,2% de todos os casos de homicídios de mulheres concentraram-se em apenas dez bairros da capital, nenhum dos quais poderia ser classificado como sendo de classe média alta ou de elite.
Cerca de metade dos casos de homicídios de mulheres ocorridos em Recife no ano de 2009 pertenciam à configuração que pode ser descrita como "homicídio cometido por parceiro íntimo". A outra metade dos casos, porém, foi distribuída por um conjunto de situações bem distintas dessa primeira: crimes relacionados à dinâmica do tráfico de drogas, derivados de conflitos familiares, resultantes de conflitos interpessoais com conhecidos, cometidos em contextos de uso de drogas, homicídios sexistas e latrocínios. A associação entre elementos da subordinação de gênero e raça e da situação sócio-econômica em contextos de criminalidade urbana parece, assim, criar novas condições de "vítima" para as mulheres.
Por razões de espaço, não será possível exemplificar os distintos cenários dos homicídios de mulheres identificados em um estudo nosso realizado em Recife, para o ano de 2009, a partir da análise de inquéritos policiais. Mas vale a pena chamar a atenção para alguns elementos que desafiam a noção de que todas as mulheres são assassinadas por companheiros ou ex-companheiros, em situações de conflitos conjugais. Tampouco é verdade que o tráfico de drogas é o contexto no qual morrem todas as outras mulheres que, por ventura, não foram mortas por seus parceiros. São diversos os cenários da violência letal contra as mulheres, mas, em todos, é possível identificar elementos associados à sua condição de mulher e às desigualdades de gênero que concorreram para o agravamento de sua vulnerabilidade à violência.
Assim, muitas mulheres que morrem em situações de criminalidade mantém um vínculo amoroso ou familiar com um homem criminoso e, por isso, assumem, em nome dele, posições e tarefas arriscadas, sem contarem com a mesma autoridade, legitimidade diante do grupo ou habilidade no uso de armas do parceiro. No homicídio sexista a discriminação de gênero atua como motivação, mas o agressor não mantém relação amorosa ou familiar com a vítima. Esse foi o caso de duas garotas de programa, pobres e negras, cujo exercício da profissão produziu as circunstâncias de suas mortes: sozinhas com os agressores, em ambiente ermo, durante a madrugada, sem possibilidades de fuga ou busca por socorro. No caso de assassinatos cometidos por familiares ou conhecidos, a situação assemelha-se às que vitimam os homens, com a presença de agressores mais jovens que a vítima e motivação relacionada à posse de bens materiais e financeiros da mulher. Assim, o que se vê é que o entrecruzamento das condições de gênero, raça e situação sócio-econômica em áreas de precariedade social e grande registro de violência criminal parece estar criando novas situações de vulnerabilidade para as mulheres que requerem novas compreensões, explicações teóricas e intervenções políticas. O Pacto pela Vida, política pública de segurança implementada desde 2006, pode ser considerada bem sucedido, uma vez que tem alcançado as metas de redução dos homicídios, e acerta em sua estratégia para enfrentar os homicídios decorrentes das situações de criminalidade e que constituem a grande maioria dos casos ocorridos no estado. Mas, assim como o senso comum, as políticas públicas também precisam ser desafiadas a se apropriarem e compreenderem a complexidade dos problemas sociais - que é o requisito básico para a definição de estratégias adequadas para enfrentá-los.
É a dura realidade do nosso país.
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