VIOLÊNCIA URBANA
Os rearranjos de poder no Rio de Janeiro
http://diplomatique.uol.com.br/artigo.php?id=959
por Michel Misse
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A “Pacificação”, já atinge cerca de 20 importantes áreas da capital fluminense e mantém a lógica de operar por territórios. Uma atuação herdada justamente dos atores que sempre agiram na ilegalidade durante a história do RJ. Porém, p/ terem sucesso, as UPPs precisam romper com esse sistema e integrar as áreas ocupadas.
por Michel Misse
Entre o tradicional domínio do varejo do tráfico e as diferentes “agências” de proteção que se desenvolveram no Rio de Janeiro nos últimos quarenta anos, uma nova situação começa a ganhar forma em cerca de vinte importantes áreas urbanas da cidade.
Batizadas de UPPs – Unidades de Polícia Pacificadora –, elas prometem cumprir uma antiga reivindicação de parte dos moradores dessas áreas: a de ser uma polícia comunitária confiável, capaz de servir aos moradores em vez de ameaçá-los e extorqui-los. Para que o sonho se concretize sem maiores percalços, o governador Sérgio Cabral (PMDB) resolveu convocar novos policiais militares, recém-concursados e treinados para a nova missão.
Alguns ícones da violência urbana do Rio, como a Cidade de Deus, na zona oeste, os morros da Babilônia e do Chapéu Mangueira, no Leme, a Ladeira dos Tabajaras e o Cantagalo/Pavãozinho em Copacabana e Ipanema, o pioneiro Dona Marta, em Botafogo, os tradicionais morros de São Carlos, no Estácio, Turano e Salgueiro, na Tijuca, as favelas de Santa Tereza, o antigo Borel da Muda, o Macacos, em Vila Izabel, e a célebre Mangueira, no Maracanã, são agora “territórios das UPPs”.
Além desses, são prometidas outras Unidades para os territórios conquistados nos chamados “complexos” do Alemão e da Penha, antes uma das principais bases da facção criminosa conhecida como CV (Comando Vermelho). E tudo indica que também o “complexo” da Maré, que circunda parte da Linha Vermelha, entre o Aeroporto Internacional do Galeão e a Avenida Brasil, seja o próximo “freguês”. Todos esses territórios, sob controle policial, constituem o que o secretário de Segurança Pública, José Mariano Beltrame, tem chamado de “cinturão de segurança”, com vistas à Copa do Mundo e aos Jogos Olímpicos.
O que isso pode significar, que não seja a constatação de que a “pacificação” também tem seus territórios? Ao hastear a bandeira nacional e a do Rio de Janeiro no alto da Mangueira, quando antes, nas primeiras “conquistas” de territórios, exibia-se a bandeira do Bope, com a famosa caveira, ou a bandeira da polícia, o que se está a sinalizar de tão diferente? A territorialização do poder de polícia no Rio de Janeiro é mais um capítulo de uma longa história, cujos contornos precisam ser lembrados.
Donos do espaço
Uma peculiaridade do Rio de Janeiro é sempre ter em sua história social “valentes” e “donos” de morros. Não é tanto uma história de gangues, como ocorre em outras cidades (Belo Horizonte talvez seja um exemplo), nem de pistoleiros, como no Nordeste, nem mesmo de uma criminalidade curiosamente quase invisível, de tão segmentada, como em São Paulo ou Brasília, ou mesmo como entre os jovens de classe média que traficam no Rio e em outras cidades, sem que seja preciso a identidade de um espaço urbano e a fixidez de pontos de venda de drogas.
A referência ao “território” no Rio sempre foi importante, como testemunham crônicas e reportagens de diferentes épocas, desde que Orestes Barbosa a assinalou ainda nos anos 1920. Do mesmo modo que os personagens do malandro e do marginal, que no Rio ganharam tintura urbana própria e uma visibilidade nacional por meio da música e do cinema, o território e sua divisão conflituosa entre partidos ou facções tornaram-se, desde o fim do Império, uma marca característica da ex-capital da República.
Os territórios das maltas de capoeiras, no fim do Império, que dividiram a cidade em duas bandas; os territórios dos bicheiros, cuja delimitação ainda hoje ocupa as páginas policiais da imprensa; os territórios onde se refugiavam os malfeitores e os marginais, da antiga Zona do Mangue às favelas que se erguiam nos morros da cidade; os territórios do tráfico, a partir dos anos 1970, onde ganhou efetividade a militarização sistemática da disputa dos territórios entre facções e entre estas e a polícia; o novel território das milícias, controlando a oferta diferencial, mas compulsória, de proteção e de outras mercadorias ilícitas, em várias partes da cidade; e, finalmente agora, a vitória conquistadora das polícias com o apoio tático de parte das forças armadas, sinalizando que o território deixou as margens do Estado para se integrar plenamente, com bandeiras e tudo, à ordem constituída.
Não se pode saber ainda no que vai dar todo esse respeitável investimento, mas podem-se aventar algumas hipóteses sobre por que não foi feito antes, pelos governos anteriores. É preciso considerar algumas variáveis importantes, que explicam inclusive o até agora bem-sucedido empreendimento de trazer à cidade (com a ambição de integrá-las) as áreas antes relegadas à lógica dos terrenos baldios e das janelas quebradas.
De Garotinho às milícias
As UPPs sucedem a outra experiência, menos abrangente, mas muito parecida em seu início: a experiência dos GPAEs (Grupamentos de Policiamento em Áreas Especiais), criados no governo Garotinho (1999-2002). Como o próprio nome admitia, tratava-se de uma estratégia policial para “áreas especiais”, territórios que seriam primeiramente “conquistados” dos traficantes e depois “controlados” por forças especiais localizadas fisicamente na área. O programa começou a dar certo (no mesmo sentido em que as UPPs também começaram a dar certo), mas o tráfico era forte o suficiente para continuar operando, ainda que evitando violências no território, agora tacitamente controlado pela polícia. O programa ruiu quando a grande imprensa do Rio denunciou que o governador estava também “tacitamente” aceitando que o tráfico continuasse a operar, mesmo que sem violência e sem “controle” efetivo do território. Sem maior apoio político, os GPAEs continuaram a existir como uma espécie de minibatalhões locais, mas perderam parcialmente a capacidade, inicialmente prometida, de controlar a “área especial”. Não chegaram sequer a ter a abrangência territorial das UPPs.
Entre os GPAEs e as UPPs (que o leitor desculpe a abundância de siglas) surgiram, principalmente na zona oeste, grupamentos de agentes públicos (policiais militares e civis, agentes penitenciários, bombeiros e civis armados), fora do exercício de suas funções, que passaram a conquistar militarmente territórios antes controlados pelo tráfico. Organizados em redes, a mais conhecida das quais autointitulada “Liga da Justiça”, e com membros que participavam, inclusive, do Legislativo municipal, esses grupamentos receberam o nome de “milícias”, como que a buscar a legitimação informal de “coletivos de cidadãos” interessados em oferecer proteção aos desprotegidos moradores das diferentes localidades, que eles transformaram em seus territórios.
O problema é que esses “coletivos de cidadãos” começaram a bater, expulsar e assassinar moradores que lhes resistissem ou que não quisessem contribuir com a “caixinha” protetora. Passaram também a substituir o tráfico na exploração de diferentes mercadorias ilícitas – cabo de TV clandestino, oligopólio na distribuição de gás engarrafado, transporte clandestino e compulsório em vans controladas por essas “milícias”, além da extorsão da contribuição mensal por proteção. O volume de homicídios na zona oeste alcançou níveis tão altos que as milícias, já sendo reprimidas, passaram a ocultar os cadáveres. Nos últimos anos, o volume de pessoas desaparecidas na região disputa com os homicídios o posto macabro dos primeiros lugares.
“Arrego” e extorsão
Como isso foi possível, como o tráfico – tão fortalecido nos anos anteriores – cedeu os territórios às milícias, se não cediam à polícia? Em primeiro lugar é preciso lembrar que, há décadas, policiais preferiam extorquir os traficantes a expulsá-los de seus territórios. A palavra “extorsão” nem sempre é adequada para compreender o que se passa. Havia um rearranjo de poder que interessava a ambas as partes, ainda que a troca se desenvolvesse sob forma compulsória e assimétrica. Por um lado, guarda semelhança com a forma do tributo, por outro é uma troca em que os valores são negociados a cada conjuntura da repressão.
A repressão ao tráfico sempre funcionou como matriz de preços, tanto do preço da droga quanto da fixação do valor da mercadoria política oferecida pelos policiais. Diferentemente da época do jogo do bicho, quando os policiais encontravam-se muitas vezes em posição subalterna na negociação com bicheiros, no caso do tráfico havia um “arranjo”, compulsório, mas negociado, em que a posição dominante cabe ao policial. Quanto menos negociada fosse a troca, mais se aproximava da pura extorsão, o chamado “arrego”. Mas o mais das vezes e na maior parte do tempo é uma mercadoria que é produzida em condições de monopólio, que interessa a ambas as partes e cujo valor depende de cálculo político e não só econômico.
A oferta de proteção tem diferentes conteúdos: informações sobre operações policiais, soltura de presos, facilitação na chegada de armas e drogas, “vista grossa” no cotidiano da vigilância etc.
A crescente demanda de “arrego” por policiais e a queda na demanda de cocaína no “movimento” em algumas áreas, entre 2001 e 2006, levaram setores do tráfico a repelir o “arrego” e, em três ocasiões, a incendiar ônibus e atacar, com tiros, postos policiais e até mesmo prédios da municipalidade e do governo estadual.
O enfraquecimento da principal facção, o CV, na época em que surgia e se fortalecia em São Paulo o PCC permitiu que acordos se estabelecessem entre essas redes, mas sabe-se muito pouco sobre sua extensão. Um dos indicadores de que existe essa ligação é a entrada do crack no Rio de Janeiro, sempre evitada pelo CV quando este estava fortalecido. Outro indicador do enfraquecimento do CV foi o surgimento da ADA (Amigos dos Amigos), que se interpôs na antiga e permanente disputa entre o CV e o chamado Terceiro Comando.
O desafio das UPPs
Mas há um dado sombrio e incontornável, que marcou os dez anos que antecederam a criação das UPPs: o assassinato em massa de suspeitos pela polícia, os tristemente famosos “autos de resistência”. Nesse período, foram mortos cerca de 10 mil suspeitos de roubo e tráfico (dados oficiais), a maior parte dos quais sem que se saiba exatamente em que condições. Quase nenhum desses homicídios foi a júri. Se somados ao forte aumento de condenações por tráfico, no mesmo período, não há como subestimar o que isso significou em termos de incapacitação de muitos dos principais nós das redes que constituem a principal facção, o CV, a mais insolente com a ação policial. Não por acaso, é o CV quem mais perde territórios para as UPPs.
Antes de conquistar os territórios era preciso sitiá-los, vencer-lhes a resistência, abordá-los militarmente com apoio da mídia e da opinião pública. O desafio da permanência agora não é, como se supõe, o de “levar políticas públicas” para os territórios, mas – por paradoxal que pareça – desterritorializá-los, isto é, integrá-los como bairros normalizados à cidade, dissolvê-los enquanto “territórios”, inclusive “territórios de UPPs”.
A persistência de uma lógica de territórios indica, mais uma vez, a estabilização e fixidez, nessas áreas, das margens do Estado. Favela ou comunidade, não importa o eufemismo, o que se faz é reificar no território relações sociais de segregação e estigma, de desigualdade e repressão. Nesse sentido, as UPPs terão alcançado sucesso quando não buscarem a permanência, quando não buscarem uma nova (ainda que bem intencionada) territorialização. É mais ou menos como o Bolsa Família: o sucesso depende de que o programa alcance seu fim, isto é, que tenha como meta alcançável seu próprio fim.
O grande risco é que a territorialização permaneça e, com o tempo, sirva novamente para que se reorganizem os dois principais mercados ilegais: o que oferece drogas a varejo e o que oferece mercadorias políticas
Michel Misse
Sociólogo, professor e chefe de departamento de Sociologia da UFRJ, é coordenador do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (NECVU) e pesquisador do CNPq e da Faperj. Publicou recentemente "Crime e Violência no Brasil Contemporâneo" (Lumen Juris, nova edição no prelo) e o "Inquérito policial no Brasil: uma pesquisa empírica (Booklink , 2002).
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