Transição democrática e os homicídios no Brasil
Por José Maria Nóbrega – Professor do CDSA/UFCG
O Brasil teve iniciada sua transição da ditadura para a democracia com o mecanismo que ficou conhecido como “descompressão” política, no governo do General Ernesto Geisel. No mesmo período, meados da década de setenta, a terceira via, ou onda, democrática iniciava-se em países como a Espanha e Portugal e na maioria dos países da América Latina. Rumo à democracia, os teóricos da Ciência Política americana (do sul, do centro e do norte), acreditavam que a implementação de mecanismos instrumentais da democracia liberal – teoricamente dentro dos preceitos de Dahl e Schumpeter - seria condição suficiente para o avanço dos regimes políticos dos países inseridos naquelas transições. Contudo, a teoria não foi comprovada empiricamente. Alguns países consolidaram suas democracias, outros mantiveram fortes entraves autoritários em seus regimes políticos.
Em 1985 os militares saíram do governo e, depois de vinte anos de regime de exceção, um civil assumiu o cargo de chefe de estado/governo no Brasil. Em 1988, a Constituição Federal foi promulgada e constituída como sendo a Carta Magna cidadã. Não obstante, encontramos entraves autoritários em alguns de seus artigos. Até 1999 não existia um Ministério da Defesa, este foi criado no governo de Fernando Henrique Cardoso. Até hoje há problemas no controle civil sobre os militares neste órgão ministerial. Lá, prevalece a vontade dos castrenses. Dentro do conceito mínimo de democracia contemporânea, além da falta de controle civil sobre os militares brasileiros, os direitos civis são fartamente negligenciados pelas instituições políticas/públicas do Brasil.
O conceito mínimo de democracia (consolidada) abrange alguns critérios fundamentais, segundo Mainwaring et alli (2001:645-6):
- A democracia é um regime político: (a) que promove eleições competitivas livres e limpas para o Legislativo e o Executivo; (b) que pressupõe uma cidadania adulta abrangente; (c) que protege as liberdades civis e os direitos políticos; (d) no qual os governos eleitos de fato governam e os militares estão sob controle civil.
No que tange aos critérios (a) e (b) da definição de regime político democrático acima citada, o Brasil parece ter avançado em termos democráticos. Eleições com tais características e um acesso inegável ao sufrágio universal são pontos que encontramos na democracia brasileira e poucos a isto contesta. Todavia, são nos critérios (c) e (d) que aparecem os maiores problemas em termos de comprovação empírica a definição exposta por Mainwaring. De fato, há proteção as liberdades civis e aos direitos políticos no Brasil? Há controle efetivo dos civis sobre os militares brasileiros? Neste espaço vou me deter numa parte do critério (c), ou seja, a democracia brasileira de fato protege as liberdades civis dos cidadãos brasileiros?
Entendo liberdade civil dentro de um conceito liberal mais amplo de propriedade privada. Partindo das premissas liberais do filósofo John Locke, o conceito de propriedade privada insere três ingredientes fundamentais: o primeiro são os bens do indivíduo, o segundo a sua liberdade garantida pelas instituições e o terceiro e mais importante dos três, o direito à vida, sem a qual não há como se ter bens, nem liberdade. Daí ser fundamental o direito à vida pelo estado democrático de direito. Como medir, então, o nível de garantia às liberdades civis inserido neste conceito mais amplo de propriedade privada? Enxergo na utilização de uma variável fundamental essa fórmula para resolver o problema no raciocínio aqui exposto. Esta variável seria as taxas de homicídios.
Se não há liberdade civil sem direito à vida, quando as taxas de homicídios crescem descontroladamente, e a liberdade civil é uma condição para a consolidação de um regime efetivamente democrático, a democracia está ameaçada de tornar-se inócua.
Desde a redemocratização brasileira, em 1985, que as taxas de homicídios crescem no país. Naquele ano a taxa de homicídios foi de 15/100.000 habitantes. Em 2003, depois de quatro eleições com as características do critério (a) de Mainwaring, essa taxa foi de 28,8/100.000. O número total de assassinatos em 1980 foi pouco mais de 14.000 assassinatos em todo o país. Em 2009, só na região Nordeste houve mais de 17 mil homicídios. Ou seja, enquanto a democracia eleitoral (Poliarquia para Dahl) instrumental e procedimentalista avançou, a capacidade do regime político de proteger as liberdades civis retrocedeu-se a cada ano. Visualizando desta forma, a democracia não levou à consolidação de um regime político que garantisse a integridade física dos cidadãos brasileiros.
Para Mainwaring et alli (2001) quando há graves violações nos critérios (c) e (d), no máximo o que um regime político pode ser é semidemocrático. Ou seja, uma situação híbrida, onde há características democráticas em meio a instituições políticas/públicas autoritárias. Se as Nações Unidas colocam como nível de tolerância as taxas de homicídios em 10/100.000 e um país ultrapassa esta margem, tem-se graves violações aos direitos civis e humanos. No Brasil esta taxa é quase três vezes maior que o tolerável. Então, um país que não consegue proteger as liberdades civis de seus cidadãos não pode ser uma democracia consolidada.
O Brasil é uma semidemocracia por que não protege as liberdades civis de boa parte de seus cidadãos e suas instituições políticas/públicas não respondem de forma satisfatória às agressões sofridas por eles.
A título de exemplo, e como forma de fornecer alguma sustentação empírica a esta afirmação, analiso o fluxo dos homicídios no sistema de justiça criminal de Pernambuco. No ano de 2007 ocorreram mais de 4.500 assassinatos no estado. No mesmo ano - verificando uma série temporal de 1997 a 2007, onde há uma média de 4.300 assassinatos no período -, foram denunciados 246 casos de homicídios em Pernambuco, não chegando a 6% dos números absolutos de homicídios. Mais de noventa por cento dos casos não foram denunciados ao Ministério Público de Pernambuco.
Outro exemplo é a falta de confiança da maioria da população nas polícias. Em pesquisa realizada na região metropolitana do Recife, o Instituto Maurício de Nassau* demonstrou que a maior parte da população desta região não confia nas instituições policiais, sendo o principal argumento a falta de capacidade destas instituições em resolverem os conflitos. Quando a sociedade desconfia de suas instituições, o Capital Social enfraquece, gerando déficits de controle social e civil. A falta de confiança nas polícias dificulta o trabalho de investigação e a implantação de autoria nos casos, dificultando, também, a abertura de denúncias e posterior processo na justiça.
Em suma, as taxas de homicídios crescentes é resultado da baixa eficácia – ou accountability – das instituições de administração de conflitos, ou coercitivas. Sendo assim, quando tais instituições não conseguem proteger as liberdades civis – principalmente garantindo a vida das pessoas e levando à punição aqueles que cometem homicídios – a democracia não avança para a solidez necessária, conforme os critérios mínimos elencados por Mainwaring (letra ‘c’). Não há democracia quando as taxas de homicídios são crescentes. No Brasil, suas altas taxas de homicídios deixam o país numa condição semidemocrática, com alto risco de retrocesso, pois levam os indivíduos a não respeitarem as regras do jogo democrático, desrespeitando princípios fundamentais dos direitos civis, princípios estes vitais para uma democracia consolidada.
Referência citada:
MAINWARING Scott, BRINKS Daniel e PÉREZ-LIÑÁN Aníbal (2001), “Classificando Regimes Políticos na América Latina, 1945-1999” in DADOS—Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, Vol. 44, nº 4, 2001, pp. 645 a 687.
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