CRIME ORGANIZADO ENDÓGENO
Carta Capital no. 646
Uma reação aos achaques
Rodrigo Martins 13 de maio de 2011 às 12:34h
Para Fernando Delgado, pesquisador de Harvard que coordenou um estudo sobre os ataques do PCC em 2006, a corrupção policial está no cerne dos distúrbios em São Paulo. Foto: Evelson de Freitas/AE
Em maio de 2006, uma onda de ataques promovidos pelo PCC deixou a capital paulista em pânico. A facção criminosa incendiou ônibus, metralhou delegacias e executou 43 policiais e agentes penitenciários. Em resposta à onda de terror, o governo paulista optou pela retaliação. Os confrontos deixaram o tenebroso saldo de 493 mortos em duas semanas. Cinco anos após o banho de sangue, um estudo realizado em parceria pela ONG Justiça Global e pela Clínica Internacional de Direitos Humanos da Universidade de Harvard, uma das mais prestigiadas dos EUA, lança luzes sobre o que, de fato, aconteceu naquele período.
O contundente relatório com 251 páginas aponta a corrupção policial como uma das principais causas dos ataques do PCC e revela indícios do envolvimento de policiais em 122 execuções em São Paulo. De acordo com o estudo, intitulado São Paulo Sob Achaque e divulgado na segunda-feira 9, a corrupção dos agentes públicos de segurança fortaleceu o PCC e o Estado falhou ao gerir seu sistema prisional realizando acordos com facções criminosas, ao não proteger seus agentes públicos, ao optar por um revide como resposta, ao acobertar os Crimes de Maio ou investigá-los de forma corporativista e ao apostar na expansão do sistema prisional como solução.
Em entrevista a CartaCapital, Fernando Delgado, pesquisador de Harvard e um dos coordenadores do estudo, discute as causas e avalia as respostas do poder público aos ataques. Para ler o relatório da ONG Justiça Global e da Clínica Internacional de Direitos Humanos de Harvard, clique aqui.
CartaCapital: O relatório aponta a corrupção policial como uma das principais causas dos ataques do PCC em 2006. Como vocês chegaram a esta conclusão?
Fernando Delgado: Não é uma conclusão só nossa. Essa tese também está presente em um inquérito que apurou o seqüestro de um enteado do Marcos Camacho, o Marcola, líder do PCC. O rapaz foi seqüestrado por policiais civis, que o levaram a uma delegacia de Suzano, na Grande São Paulo, e ameaçaram prendê-lo, imputando a ele uma série de crimes. Os investigadores passaram a achacar o Marcola, pediram dinheiro em troca da liberdade do enteado. Há fortes indícios de que essa tentativa de extorsão tenha sido o estopim para a deflagração dos ataques do PCC. O próprio Marcola teria dito à polícia, em 12 de maio de 2006, dia dos primeiros ataques, que isso não ia ficar barato. Portanto, não era uma simples retaliação à transferência de presos, como a cúpula do governo paulista informou à época.
CC: Essa tentativa de extorsão foi investigada?
FD: Os achacadores só foram investigados de forma séria pelo Ministério Público, e isso só ocorreu um ano depois, quando a ex-esposa de um dos investigadores envolvidos no seqüestro do enteado de Marcola, o policial Augusto Peña, entregou cerca de 200 CDs de áudio aos promotores, com as gravações dos telefonemas feitos pelo policial na tentativa de extorquir o líder do PCC. Aliás, pairam dúvidas sobre o envolvimento de outros agentes públicos neste caso. Havia uma verdadeira rede de espionagem para dar suporte aos achaques. Esses mesmos policiais foram acusados de extorquir criminosos que participaram do assalto ao Banco Central de Fortaleza. Como esses investigadores conseguiram, sozinhos, grampear tanta gente sem serem incomodados? É preciso investigar melhor o caso.
CC: O então secretário-adjunto de Segurança Pública, Lauro Malheiros Neto, pediu demissão após ser acusado de proteger os policiais achacadores. Há indícios da participação de integrantes da cúpula do governo nessa rede de extorsão?
FD: Não tivemos acesso integral ao processo que investiga a participação dele, mas há indícios de que ele de fato protegeu Peña. É importante ressaltar que ele alega inocência. Defendemos a necessidade de investigar mais seriamente a participação de integrantes do governo nessa rede de corrupção e achaque.
CC: O relatório também cita um suposto acordo feito pelo governo com o PCC para encerrar a onda de rebeliões em presídios ocorrida em 2005. Como se deu isso?
FD: Os motins em 74 presídios paulistas terminaram em menos de 24 horas após um encontro entre Marcola e a advogada e ex-delegada da Polícia Civil Iracema Vasciaveo, da Associação dos Familiares dos Reeducandos Nova Ordem, uma suposta entidade amparo ao preso. Essa reunião foi articulada pela cúpula do governo paulista, que providenciou um jato da Polícia Militar como transporte para Iracema. Ela viajou acompanhada do comandante da PM da região de Presidente Prudente e do corregedor da Secretaria de Administração Penitenciária. O governo confirma esse encontro, mas nunca revelou o teor da conversa. Há muitas versões sobre o que foi tratado ali. Certo é que há uma coincidência muito grande entre este evento e o fim da megarebelião. Tudo indica que houve algum acordo com a facção criminosa. Mas ninguém investigou isso a sério.
CC: A cúpula do governo paulista sabia que o PCC planejava atacar agentes públicos em maio de 2006?
FD: Sim, eles confirmaram isso publicamente. Talvez não tivessem a confirmação exata das dadas, mas o governador Cláudio Lembo afirmou, naquela época, que sabia dos ataques do PCC com antecedência e já esperava alguma coisa naquele período. O maior problema foi o fato de o governo não ter alertado os agentes públicos de Segurança do risco que eles corriam. Os policiais e agentes penitenciários estavam vulneráveis e não receberam nenhum tipo de alerta ou orientação.
CC: As mortes dos agentes públicos e dos supostos criminosos foram investigados da mesma maneira pela polícia?
FD: Com certeza houve seletividade. Basta analisar, por exemplo, os resultados das investigações conduzidas pelo Departamento de Homicídios (DHPP). Dos 14 assassinatos de policiais investigados por eles, 12 foram esclarecidos. De outras 34 mortes relacionadas aos ataques do PCC, com suspeitas de execuções cometidas por policiais, apenas quatro foram elucidadas. O percentual seria de 85% para um lado e de 13% para o outro. Isso sem contar que o DHPP tem um histórico muito bom em esclarecimento de chacinas, uma média de quase 90%, segundo dados oficiais. Em maio de 2006, eles investigaram quatro chacinas onde havia indícios de envolvimento de policiais.
E só esclareceram um desses casos. Mas é importante ressaltar que o DHPP não investigou tudo. Muitos crimes ocorreram no interior do estado, ficaram a cargo das delegacias regionais. Dos 493 assassinatos ocorridos entre 12 e 20 de maio de 2006, acreditamos que 71 estão relacionadas à atuação de grupos de extermínio integrados por policiais. A suposta resistência seguida de morte, isto é, as mortes resultantes de confrontos entre a polícia e os criminosos, não são investigadas nunca.
CC: Que tipo de indícios demonstra que esses grupos de extermínio eram integrados por policiais?
FD: Nos pouquíssimos casos elucidados, ficou comprovado o envolvimento de policiais. E o modus operandi dos demais grupos era muito parecido. Primeiro, policiais passam pelas ruas e anunciam um toque de recolher à população. Depois, uma viatura de polícia passa e identifica os suspeitos. Em alguns casos, chega a abordá-los. Minutos depois chega um grupo de encapuzados armados para executá-los. E eles tomam o cuidado de recolher capsulas de bala do chão. Mais tarde voltam a aparecer policiais fardados, que recolhem os cadáveres com o pretexto de prestar socorro, mesmo quando a vítima está visivelmente morta, com pedaços de cérebro espalhados pelo chão. É uma forma de descaracterizar a cena do crime e dificultar a perícia.
CC: E como o Ministério Publico e o Judiciário se portaram diante dessas situações?
FD: Não dá para generalizar. Muitos promotores fizeram um trabalho sério, não aceitaram os pedidos de arquivamento da Polícia Civil e exigiram uma apuração mais criteriosa dos assassinatos. A maioria, no entanto, levou os pedidos de arquivamento adiante e os juízes acataram.
CC: É por isso que vocês propõem o deslocamento de competência dos Crimes de Maio da justiça estadual para a federal?
FD: Exatamente. Entendemos que houve falhas graves na investigação da polícia e na atuação dos promotores e juízes. Entendemos que a Polícia Federal e o Ministério Público Federal possam investigar esses casos com menos pressões.
CC: E a sugestão de instaurar uma CPMI no Congresso?
FD: A CPMI contribuiria para uma investigação mais aberta sobre as motivações e as respostas do Estado em relação aos Crimes de Maio. É a possibilidade de fornecer uma resposta a São Paulo sobre aquilo que de fato aconteceu e criar mecanismos para evitar uma nova onda de violência no estado.
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