O massacre de Realengo: mitos e realidade

Original publicado em O GLOBO, 11 de abril de 2011, pág. 6, sob o título de "Entender, sem reinventar a roda"

GLÁUCIO SOARES

IESP/UERJ

Afinal, o que sabemos sobre o massacre de Realengo?

Ele tem muitas semelhanças com outros que aconteceram em vários países. Pertence a uma sub-categoria de assassinatos múltiplos chamada de rampage killings. "Rampage" é uma expressão que se aplica a estouros destrutivos, como o estouro de uma boiada ou quando um elefante "goes amok" e sai destruindo tudo o que encontra. Usualmente acontece num local só, uma característica que o diferencia de outros tipos de assassinatos múltiplos. É planejado.

É muito diferente dos spree killings, que se caracterizam pela mobilidade da violência e pela curta duração. O que acaba de acontecer em Santos é um típico spree killing.

Há um terceiro tipo, sobre o qual mais se tem escrito, os serial killings. Podem ocorrer ao longo de muitos anos, frequentemente com aberrante motivação sexual, mas também podem ter motivação financeira, particularmente os cometidos por mulheres. Os autores raramente se suicidam.

Um dos mitos diz que os rampage killings são coisa dos últimos anos. O pior massacre em estabelecimentos educacionais americanos aconteceu há 84 anos, em 1927, deixou 45 mortos e 58 feridos. Um membro da própria comissão educacional se rebelou contra um aumento no equivalente ao IPTU para construir novas escolas. Era um fazendeiro que tinha ido à falência parcialmente por essa razão. Em 1913, Heinz Schmidt matou cinco pessoas em Bremen e feriu perto de vinte. Ou seja, há quase cem anos.

Outro erro é a afirmação de que os rampage killings são quase exclusivamente americanos, segundo alguns, ou ocidentais, segundo outros. Não é assim. A informação sobre alguns países não chega à mídia por problemas de idioma e de falta de centralidade do país. Os 50 rampage killings que mais mataram em estabelecimentos educacionais tiveram lugar em 17 países diferentes; nada menos do que 13 ocorreram na China. Exemplo: em 23 de março do ano passado, em Fujian, China, um médico desempregado matou oito crianças. A justiça na China é rápida e ele foi executado um mês depois. No mesmo dia, houve um ataque contra crianças em um kinder, no sul da China, deixando 16 feridas. Nos dias seguintes houve mais dois ataques semelhantes. Wu Hanming atacou outro kinder – de 20 crianças sobraram três intocadas. Wu também matou o administrador da escola e a mãe dele antes de se suicidar. Foi uma onda: de 23 de março a 12 de maio houve seis eventos desse tipo. Os rampage killers chineses eram todos homens maduros com fracassos econômicos e profissionais.

O controle de armas de fogo na China é sério, contribuindo para explicar a baixíssima taxa de homicídios no país (1,2 por 100 mil no último ano disponível, mínima em comparação com a americana de 5 e a nossa de 22 por 100 mil, dados da mesma fonte). Como resultado, usualmente as armas usadas são espadas e facas longas. Essas armas são menos eficientes, o que explica porque houve muito mais feridos do que mortos: mais de 70 em contraste com 16. Não temos como saber quantos fogem. Mas, onde há facilidades para obter armas, as de fogo são preponderantes e mortíferas, Frequentemente são armas de repetição e esses crimes, em sua maioria, são cometidos por membros da cultura de armas.

O local é importante para diferenciar os rampage killings dos spree killings e dos serial killings: todas ou o grosso das mortes são num mesmo lugar (escola, fábrica etc.), e, com frequência, o autor esteve funcionalmente (ou disfuncionalmente) associado com o lugar. Em contraste, nos spree killings o local vai mudando e não há associação dos assassinos com os locais.

O bullying entra como fator explicativo? Entra, particularmente nos eventos que ocorrem em escolas secundárias. Porém, a despeito da popularidade obtida pelo filme 'Em um mundo melhor', ganhador do Oscar de melhor filme estrangeiro, a disparidade numérica garante que os eventos de bullying não sejam condição suficiente nem necessária para os rampage killings. Há mais de um bilhão e setecentos milhões de jovens no planeta, pelo menos sete ordens de grandeza a das vitimas de rampage killings em um ano. Uma estimativa conservadora diria que cerca de 170 milhões de jovens sofrem algum tipo de violência ou humilhação anualmente.

Um estudo de 61 assassinos múltiplos na Alemanha eliminou velhos mitos. A pesquisa, realizada com os condenados entre 1945 e 1995, comparou os assassinos múltiplos com homicidas comuns. Em que mais os assassinos em série diferem dos assassinos singulares, comuns, além de terem matado mais de duas pessoas? São dois perfis psicológicos muito diferentes. Uma percentagem muito mais alta dos assassinos múltiplos apresenta desordens de personalidade, anomalias cerebrais e premeditação. As doenças mentais são muito mais freqüentes.

Rampage killers raramente tentam escapar. Muitos se suicidam, inclusive alguns que se suicidam através da polícia (suicide by cop), saindo atirando contra muitos policiais armados. Dos 50 rampage killers que mais mataram gente em estabelecimentos educacionais, 27 se suicidaram. Essa característica, que também está presente nos atentados terroristas, levaram Adam Lankford da Universidade de Alabama, a colocar mais ênfase na tendência suicida dos autores do que nos homicídios. Segundo carta recebida dele, essa é a motivação primária, e o ódio homicida contra outros está enraizado na desesperança, na percepção de serem perseguidos e no desejo de escapar de seus problemas de maneira "espetacular", deixando como marca uma trilha de sangue. Em 1998, três anos antes do ataque terrorista contra as Torres Gêmeas, Lankford publicou um artigo no qual revelou que os assassinos da escola Columbine discutiram a possibilidade de tomar de assalto um avião e jogá-lo contra os edifícios de Nova Iorque. Segundo ele, o entusiasmo de rampage killers com os terroristas suicidas mostram que há uma área comum entre os dois tipos de pessoas.

Há condições e parâmetros no massacre de Realengo semelhantes aos de outros massacres ocorridos em outros tempos e em outros lugares. Podemos entender melhor Realengo se estudarmos o muito que já foi escrito e pesquisado a respeito desses massacres, sem tentar reinventar a roda.

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