Tiririca foi diplomado hoje e foi bastante aplaudido: o artigo abaixo é fundamental para refletirmos
Pode ficar pior
Publicado em 17.12.2010, Jornal do Commercio
Walkiria C. M. Borba
Publicado em 17.12.2010, Jornal do Commercio
Walkiria C. M. Borba
Assisti, na semana passada, estarrecida, ao resultado do julgamento sobre a capacidade de leitura e escrita do deputado federal mais votado nas últimas eleições, Francisco Everardo Oliveira Silva (PR-SP), o palhaço Tiririca. Afinal, o que se entende por capacidade de leitura e de escritura? O que é ser analfabeto? De que analfabetismo se fala quando o assunto é eleição? Será que os juízes conhecem o conceito de analfabetismo funcional?
Conforme a decisão do juiz Aloisio Sérgio Rezende Silveira, da 1ª Zona Eleitoral de São Paulo, Tiririca comprovou que possui noções básicas de leitura e escrita, ou seja, o magistrado declarou que, na audiência de 11 de novembro, em que Tiririca passou por um teste de leitura e ditado, o palhaço demonstrou “um mínimo de intelecção do conteúdo do texto, apesar da dificuldade na escrita”. Ora, intelecção é o primeiro estágio do processo de leitura, o estágio em que se decodifica, ou seja, um estágio que deve ser superado, automatizado para que a compreensão possa acontecer. Tiririca não saiu do primeiro estágio. Logo, o deputado federal eleito decodifica, e com dificuldade, mas não foi testado se ele compreende o que está lendo, que seria o segundo estágio do processo de aquisição da leitura para chegar, então, ao terceiro e fundamental estágio de leitura: a interpretação.
Caros magistrados, que país é este em que quem avalia o processo de leitura e escrita de uma pessoa não são professores, linguistas, pedagogos? Uma fonoaudióloga julgando um processo de aprendizagem da leitura e da escrita? Que especialista é esta? A noção de leitura e escrita apresentada não está fundamentada no que há de mais recente em pesquisa sobre a aquisição de leitura e escrita. É assustador ver em cadeia nacional um juiz apresentar seus argumentos em bases tão superficiais. Será que o ministro da Educação está acompanhando isso? Esse julgamento é uma afronta aos avanços ocorridos nos últimos 30 anos em termos de aquisição da linguagem, de estudo dos processos cognitivos envolvidos em leitura e escritura. A avaliação feita põe por terra todas as bases em que o Enem está construído, todos os testes nacionais e internacionais de leitura e escrita como, por exemplo, o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) e o Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa). O que a OAB tem a dizer sobre isso?
E nem falei sobre o teste de escrita, que foi um absurdo, um ditado! Será que não sabem que esse procedimento já foi banido das escolas? Escrever não se resume a codificar, mas a pensar no propósito do que será escrito, quem será o receptor, qual o melhor canal, código, como estruturar a mensagem etc. O que fazemos com todas as pesquisas sobre gêneros textuais, sua aprendizagem, suas funções? Para que/quem fazemos ciência?
Infelizmente, essa é a estrutura da nossa sociedade, avaliações feitas por leigos, pesquisas ignoradas, um povo que escolhe sem ter noção das habilidades e competências necessárias que um candidato deve apresentar para poder exercer seu cargo com eficácia e eficiência. Onde vamos parar? Pior que tá, não fica? Que o povo possa acompanhar a trajetória de Tiririca e fazer, assim, valer o slogan do palhaço, digo, deputado federal.
» Walkiria C. M. Borba é professora universitária
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