“Ficando para trás”
Por José Maria Nóbrega Jr. – Doutor em Ciência Política pela UFPE
ESTAMOS acompanhando a mixórdia vivida pelo Equador com a “pretensa tentativa de golpe de estado” por parte da polícia daquele país. Interessante esse momento para escrever um pouco sobre a realidade política, institucional, social e econômica da América Latina e procurar respostas para o distanciamento desta parte do mundo em relação aos Estados Unidos, distanciamento este entre duas Américas completamente distintas. Sugiro a leitura do recém lançado livro organizado por Francis Fukuyama, “Ficando para trás” explicando a crescente distância entre América Latina e Estados Unidos, publicado no Brasil pela Rocco. Aí temos alguns artigos interessantes sobre tal distanciamento, escrito por cientistas políticos, historiadores e economistas.
Adam Przeworski e Carolina Curvale argumentam em torno da política, esta explica a lacuna econômica entre os Estados Unidos e a América Latina? Com argumentos interessantes e metodologia sofisticada, esses autores investigam a performance das instituições políticas dos países latino americanos em tentar manter estabilidade e previsibilidade de regras e normas para o incremento do desenvolvimento econômico. A análise aponta para a instabilidade e, conseqüente, ineficácia das instituições políticas dos países latino-americanos como potencial variável explicativa para o terrível insucesso econômico e o que resulta desse insucesso: desigualdades, pobreza e violência.
Afirmam que a instabilidade política é economicamente onerosa e que, mesmo hoje com democracias representativas avançando sob o continente, tal instabilidade ainda é bastante forte o que pode vir a ameaçar a própria democracia como procedimentos. Przeworski e Curvale ainda ressaltam que os momentos de independência dos países latino-americanos, comparando com os Estados Unidos, e a consolidação de sistemas políticos minimamente estáveis e administráveis sob o ponto de vista institucional, foi bastante sofrível e de grande conturbação e que, baseado no conceito de path dependence, gerou déficits institucionais sérios para a consolidação de instrumentos de controle social eficazes que gerassem, por sua vez, resolução para problemas de ação coletiva. As elites políticas de países como a Venezuela, o Equador, a Bolívia, a Argentina e, em menor grau, o Brasil e o Chile, não conseguiram efetivar instrumentos de participação que levassem em consideração os diversos atores sociais das camadas mais pobres, o que estimulou a ascensão ao poder – quando da evolução da democracia representativa – de figuras carismáticas e populistas (Przeworski e Curvale, 2010).
A lacuna econômica entre a América Latina e os Estados Unidos é resultado do que aconteceu na vida de cada um dos países dos dois blocos continentais, das condições herdadas da época da colonização ou da independência. A renda per capita na América Latina era a mesma da dos Estados Unidos em 1700. Se o crescimento da renda dos latino-americanos tivesse sido mantido na mesma dinâmica evolutiva da dos norte-americanos, a diferença de renda em 2000 seria de pouco mais de trezentos dólares. Contudo, a renda per capita em 2000 dos Estados Unidos foi de quase trinta mil dólares e a da América Latina não chegou aos seis mil dólares (Przeworski e Curvale, 2010: 124).
Quais as conseqüências institucionais desse disparate?
As guerras de independência e suas conseqüências custaram caro em termos de crescimento econômico para os países latino-americanos. Do ano da independência até a consolidação mínima de regras que levassem o sistema político a estabilidade, os países da América Latina enfrentaram períodos longos de tumulto com grandes prejuízos sociais que contribuíram decisivamente para o aumento da lacuna entre os continentes.
“O período posterior à independência não foi completamente pacífico nos Estados Unidos e a eleição de 1800 levou o país ao limiar da violência. Como vimos, a renda per capita declinou neste período. Mas a intranqüilidade política nos Estados Unidos foi pequena em comparação com a maior parte dos países latino-americanos, onde as guerras de independência foram, em grande parte, guerras civis prolongadas que continuaram até muito depois de conseguida a independência” (Przeworski e Curvale, 2010: 132-33).
Depois de estabelecidos os dispositivos institucionais minimamente consolidados, diferente do que ocorreu nos Estados Unidos e na Europa Ocidental, a instituição do voto como mecanismo de participação política não provocou crescimento econômico, nem social.
Alguns autores explicam a gritante desigualdade social dentro dos países latino-americanos como o resultado do domínio dos bens de capital por parte de uma elite altamente excludente e hierárquica, que se entranhou no poder sem deixar espaço para a inclusão de outros atores sociais. Disso, resultou o surgimento de atores sociais populistas (“pais dos pobres”) em vários países da região. Ou seja, a desigualdade social seria o “pecado original” dos países latino-americanos.
Mesmo essas teorias tendo grande aceitação por parte da sociedade de membros da academia, deve-se refutar tais teorias quando não há o mínimo de fundamentação metodológica. As interpretações históricas sem investigação mais profunda nos induzem ao erro. Os estudos mais robustos apresentados miram nas falhas das instituições políticas as principais causas do fracasso da democracia representativa em boa parte dos países latino-americanos, e que a desigualdade social estaria ligada a tal fracasso.
Na maioria desses países, as suas instituições políticas não foram capazes de absorver os conflitos sociais e resolvê-los de forma pacífica. O problema da ação coletiva permaneceu, por muito tempo, insolúvel. As rupturas violentas contínuas atrapalharam veementemente a consolidação de instrumentos legais minimamente previsíveis.
O excesso de golpes militares nos países latino-americanos justifica empiricamente a instabilidade política das instituições políticas, principalmente as de caráter representativo. A interrupção de mandados do Executivo em diversos países é uma contínua, como corriqueiramente observamos na realidade da América Latina – exemplo de alguns casos recentes: Equador, com o cerceamento do presidente Rafael Corrêa; no ano passado em Honduras, com a expulsão do seu presidente do país; e, mais continuamente, com a instabilidade assaz violenta da Venezuela.
As mudanças constitucionais freqüentes, também são óbices para a eficácia e previsibilidade das instituições políticas nos países latino-americanos.
Fukuyama ressalta a importância das instituições como termômetro para analisar as diferenças cruciais de desenvolvimento entre os Estados Unidos e a América Latina. Afirma que, mesmo depois da terceira onda democrática que atingiu os países latinos americanos a partir de meados da década de oitenta, nenhum país desses teve uma história ininterrupta de governo democrático e os desvios na região, em termos de governo autoritário, repressão de direitos humanos, conflitos civis e violência, foram frequentemente severos (Fukuyama, 2010: 227).
O foco de Fukuyama ultrapassa as análises econômicas baseadas em macrovariatas tradicionais (como renda per capita e Gini, por exemplo), destinando sua preocupação às instituições políticas que perpassam o viés eleitoral da democracia como sistema político (Dahl, 2005 e Lijphart, 2003). Para ele, as instituições são importantes e sua capacidade de manter o mínimo de ordem pública e de garantias constitucionais está no cerne da questão institucional.
Contudo, Fukuyama dá uma dimensão bem maior do que merece ao aspecto cultural. Ou seja, a cultura política não só importa, mas é determinante! Seria como afirmar que o ethos autoritário que caracteriza a história política brasileira dificilmente seria afastado de suas instituições democráticas. Apesar de darmos considerável atenção a esta variável, é importante revelar que culturas mudam, o que pode acontecer com esta cultura autoritária ainda enraizada em muitas instituições brasileiras.
De toda a forma, independente do sistema político em destaque - se o modelo de Westminster ou majoritário, se o modelo Consensual ou proporcional -, a cultura autoritária estaria enraizada de tal forma nas instituições políticas dos países latino-americanos que cancelaria qualquer possibilidade de avanço a um modelo mais responsivo de instituições liberais nos moldes das instituições nos Estados Unidos.
O monopólio da força foi garantido de forma eficaz e democrática naquele país, onde sua sociedade legitimou fortes instituições jurídicas capazes de amenizar o poder discricionário do Estado, juntamente com o federalismo que criou condições de freios e contrapesos, evitando o conflito entre os entes federativos, sobretudo após a Guerra Civil que consolidou tal sistema em meados do século XIX.
Dessa forma, “o sistema político americano tem sido capaz de processar os conflitos e incorporar novos agentes sociais com relativo sucesso. A cidadania foi expandida, incluindo pessoas sem bens imóveis, afro-americanos e povos indígenas, além das mulheres. Novos agentes sociais, como a classe trabalhadora e uma multidão de grupos étnicos e/ou imigrantes encontraram representação dentro do sistema político. (...) o sistema é visto como legítimo por uma esmagadora maioria de americanos e o domínio da lei é tratado como sacrossanto.
Isso não aconteceu na América Latina, onde nenhum país teve continuidade de regime desde a independência. (...). Infelizmente, a sucessão via golpes militares foi muito comum no século XX (...), e em nenhum lugar mais do que no país que no passado foi o mais desenvolvido: a Argentina. Nos últimos anos, líderes políticos no Peru, na Argentina e na Colômbia tem gasto um tempo considerável mudando regras constitucionais sobre sucessões (em geral tentando dar a si mesmos mandatos extras). Desde os anos 1990, presidentes eleitos tem sido repetidamente forçados a abandonar seus cargos antes do final dos mandatos no Equador, na Bolívia, na Venezuela e no Peru” (Fukuyama, 2010: 313).
Em nenhum país onde partidos populistas alcançaram o poder, a desigualdade medida pela distribuição de terra foi arrefecida. No Brasil, onde os programas assistencialistas diminuíram a miséria e a economia estável arrefeceu a pobreza, aumentando o poder de compra da população inserindo, dessa forma, maior proporção de pessoas dentro da classe média, não foi suficiente para estabelecer instituições capazes de manter o monopólio da força dentro de princípios constitucionais. Daí as altas taxas de criminalidade e violência que recrudesceu nos últimos vinte anos de forma avassaladora.
O livro serve, sobremaneira, para refletirmos a respeito desta vala que nos separa dos nossos vizinhos do norte. Com artigos de alto rigor metodológico, como o de Przeworski e Curvale, e outros de maior nível de interpretação histórica, todos convergem para a explicação institucional do fracasso latino-americano frente aos Estados Unidos. A saída está nas instituições democráticas, não apenas no seu viés instrumental (democracia representativa), mas na sua capacidade de estabelecer o estado democrático de direito, com garantias à propriedade privada, aos direitos humanos e a real absorção dos atores sociais pelo aparato jurídico da igualdade perante às leis.
Bibliografia:
DAHL, Robert (2005), Poliarquia. Edusp. São Paulo.
FUKUYAMA, Francis (org.) (2010), Ficando para trás. Explicando a crescente distância entre América Latina e Estados Unidos. Editora Rocco. Rio de Janeiro.
FUKUYAMA, Francis (2010), “Seriam as Instituições Falhas uma Explicação para a Lacuna de Desenvolvimento entre os Estados Unidos e a América Latina?” in Ficando para trás. Francis Fukuyama (org.). Editora Rocco. Rio de Janeiro. Pp. 227-256.
LIJPHART, Arend (2003), Modelos de Democracia. Desempenho e padrões de governo em 36 países. Civilização Brasileira. Rio de Janeiro.
PRZEWORSKI, Adam e CURVALE, Carolina (2010), “A Política Explica a Lacuna Econômica entre os Estados Unidos e a América Latina?” in Ficando para trás. Francis Fukuyama (org.). Editora Rocco. Rio de Janeiro. Pp. 121-160.
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