A prioridade invertida
Maílson da Nóbrega
Publicado na Veja, Edição 2.169, 16 de junho de 2010
"A opção preferencial pelos idosos não se justifica sequer pelo lado do combate à pobreza, pois 94,7% dos que recebem benefícios previdenciários não são pobres"
A sociedade deve optar pelas crianças ou pelos idosos? Resposta óbvia: pelos dois. Os idosos, de qualquer nível social, merecem uma velhice decente, sejam os que se prepararam para a aposentadoria, sejam os que, sem condições de fazê-lo, recebem uma renda mínima do estado. Uma opção não pode se sobrepor à outra.
No Brasil, todavia, a opção é pelos idosos. A partir da Constituição de 1988, o Congresso e o Executivo, sob pressão de lobbies ou por irresponsabilidade fiscal, se engajaram numa marcha da insensatez que fez dos aposentados um grupo privilegiado da sociedade. Ainda mais privilegiados, muitos servidores públicos recebem aposentadorias mensais de mais de 20 000 reais, sem terem contribuído para tanto.
Um novo passo nessa marcha foi dado pelo Congresso ao aumentar em 7,7% as aposentadorias superiores a um salário mínimo e eliminar o fator previdenciário. Por essas e outras, de 1988 para cá os gastos previdenciários saltaram de 4,5% para 11,2% do PIB. Os do INSS, aí incluídos, subiram de 2,5% para 7,2% do PIB, por conta, sobretudo, dos aumentos reais do salário mínimo, que reajusta dois em cada três de seus benefícios.
Entre 1994 e 2010, descontada a inflação, o mínimo cresceu 125% e os gastos previdenciários passaram de 84 bilhões para 248 bilhões de reais. Tornamo-nos um país jovem que gasta nesse campo como nação madura. Com sobrevida pós-aposentadoria semelhante à dos habitantes dos países ricos, os brasileiros se aposentam precocemente por tempo de serviço: as mulheres aos 51 anos e os homens aos 54. Naqueles países, aposenta-se por idade, entre 60 e 67 anos.
A Coreia do Sul gasta 1,4% do PIB com previdência. A China, 2,7% do PIB. Sua razão de dependência demográfica - população entre 15 e 64 anos dividida pela de 65 anos e mais - é 12,5 e 10,6, respectivamente. Brasil: 9,1. Calcula-se que nossa razão justificaria gastos previdenciários de no máximo 3,5% do PIB.
Há muitos mitos em torno do assunto. Fala-se que o idoso ganha pouco, mas na média se percebe mais na aposentadoria do que no trabalho: 121% do rendimento dos trabalhadores industriais. Nos Estados Unidos, essa relação é de 50%. Na Suécia, é de menos de 70%.
Quem se aposentou com mais de um salário mínimo reclama de perdas nos últimos quinze anos. Estaria recebendo um número menor de mínimos. Outro mito. No período, os reajustes superaram a inflação em 25,2%. Fabio Giambiagi tem um exemplo didático: se esse raciocínio valesse para o aluguel de um imóvel em reais, o proprietário diria que recebe hoje um número menor de mínimos, o que não faz sentido.
A esquerda propaga outro mito: a ausência de déficit no INSS. Contribuições sociais, que integram a "seguridade social", estariam sendo usadas para pagar juros e outras despesas. Sem a tungada, a Previdência teria superávit. Tese furada. Mudar o lugar do déficit não refresca a situação do Tesouro. Mais um mito: há déficit por causa da sonegação, como se a fiscalização não tivesse melhorado.
A opção preferencial pelos idosos não se justifica sequer pelo lado do combate à pobreza, pois 94,7% dos que recebem benefícios previdenciários não são pobres. Enquanto isso, 44% das crianças de até 14 anos são pobres, das quais perto de 20% são extremamente pobres. Per capita, o estado gasta com idosos pobres cerca de trinta vezes o que gasta com crianças pobres. É uma prioridade completamente invertida.
Alheio a tudo isso, o Congresso, por certo considerando que crianças não votam, tem agido persistentemente em favor dos idosos. Sua contrarreforma pode acelerar a ruína previdenciária. A menos que acordemos para a gravidade da situação e elejamos líderes transformadores, o problema pode ficar insolúvel até o desastre final.
Saiu excelente livro sobre o tema, de Fabio Giambiagi e Paulo Tafner: Demografia, a Ameaça Invisível (Editora Campus/Elsevier). Foi a inspiração desta coluna. A obra inclui manifestação favorável de ministros da Fazenda dos últimos seis governos. O diagnóstico e as ideias de reforma - constantes do livro - têm, pois, o apoio de distintas correntes de opinião.
É preciso insistir nas disfunções do sistema previdenciário e na necessidade de reforma, sem a qual o futuro será negro para as próximas gerações.
Maílson da Nóbrega é economista
No Brasil, todavia, a opção é pelos idosos. A partir da Constituição de 1988, o Congresso e o Executivo, sob pressão de lobbies ou por irresponsabilidade fiscal, se engajaram numa marcha da insensatez que fez dos aposentados um grupo privilegiado da sociedade. Ainda mais privilegiados, muitos servidores públicos recebem aposentadorias mensais de mais de 20 000 reais, sem terem contribuído para tanto.
Um novo passo nessa marcha foi dado pelo Congresso ao aumentar em 7,7% as aposentadorias superiores a um salário mínimo e eliminar o fator previdenciário. Por essas e outras, de 1988 para cá os gastos previdenciários saltaram de 4,5% para 11,2% do PIB. Os do INSS, aí incluídos, subiram de 2,5% para 7,2% do PIB, por conta, sobretudo, dos aumentos reais do salário mínimo, que reajusta dois em cada três de seus benefícios.
Entre 1994 e 2010, descontada a inflação, o mínimo cresceu 125% e os gastos previdenciários passaram de 84 bilhões para 248 bilhões de reais. Tornamo-nos um país jovem que gasta nesse campo como nação madura. Com sobrevida pós-aposentadoria semelhante à dos habitantes dos países ricos, os brasileiros se aposentam precocemente por tempo de serviço: as mulheres aos 51 anos e os homens aos 54. Naqueles países, aposenta-se por idade, entre 60 e 67 anos.
A Coreia do Sul gasta 1,4% do PIB com previdência. A China, 2,7% do PIB. Sua razão de dependência demográfica - população entre 15 e 64 anos dividida pela de 65 anos e mais - é 12,5 e 10,6, respectivamente. Brasil: 9,1. Calcula-se que nossa razão justificaria gastos previdenciários de no máximo 3,5% do PIB.
Há muitos mitos em torno do assunto. Fala-se que o idoso ganha pouco, mas na média se percebe mais na aposentadoria do que no trabalho: 121% do rendimento dos trabalhadores industriais. Nos Estados Unidos, essa relação é de 50%. Na Suécia, é de menos de 70%.
Quem se aposentou com mais de um salário mínimo reclama de perdas nos últimos quinze anos. Estaria recebendo um número menor de mínimos. Outro mito. No período, os reajustes superaram a inflação em 25,2%. Fabio Giambiagi tem um exemplo didático: se esse raciocínio valesse para o aluguel de um imóvel em reais, o proprietário diria que recebe hoje um número menor de mínimos, o que não faz sentido.
A esquerda propaga outro mito: a ausência de déficit no INSS. Contribuições sociais, que integram a "seguridade social", estariam sendo usadas para pagar juros e outras despesas. Sem a tungada, a Previdência teria superávit. Tese furada. Mudar o lugar do déficit não refresca a situação do Tesouro. Mais um mito: há déficit por causa da sonegação, como se a fiscalização não tivesse melhorado.
A opção preferencial pelos idosos não se justifica sequer pelo lado do combate à pobreza, pois 94,7% dos que recebem benefícios previdenciários não são pobres. Enquanto isso, 44% das crianças de até 14 anos são pobres, das quais perto de 20% são extremamente pobres. Per capita, o estado gasta com idosos pobres cerca de trinta vezes o que gasta com crianças pobres. É uma prioridade completamente invertida.
Alheio a tudo isso, o Congresso, por certo considerando que crianças não votam, tem agido persistentemente em favor dos idosos. Sua contrarreforma pode acelerar a ruína previdenciária. A menos que acordemos para a gravidade da situação e elejamos líderes transformadores, o problema pode ficar insolúvel até o desastre final.
Saiu excelente livro sobre o tema, de Fabio Giambiagi e Paulo Tafner: Demografia, a Ameaça Invisível (Editora Campus/Elsevier). Foi a inspiração desta coluna. A obra inclui manifestação favorável de ministros da Fazenda dos últimos seis governos. O diagnóstico e as ideias de reforma - constantes do livro - têm, pois, o apoio de distintas correntes de opinião.
É preciso insistir nas disfunções do sistema previdenciário e na necessidade de reforma, sem a qual o futuro será negro para as próximas gerações.
Maílson da Nóbrega é economista
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