Estupidez, hipocrisia e a flotilha de Gaza
Revista Época, 14 de Junho de 2010
CHRISTOPHER HITCHENS
é escritor, colunista da revista Vanity Fair, autor e colaborador regular do New York Times e The New York Review of Books. Escreve quinzenalmente em ÉPOCA
Espero que a esta altura Israel lamente sua colaboração passada com alguns dos piores elementos da Turquia moderna. Há não muito tempo, grupos lobistas de judeus americanos – e, dizem, até o embaixador israelense em Washington, Michael Oren – estavam fazendo um bem-sucedido lobby para o Congresso dos Estados Unidos recusar a resolução que condenava o genocídio dos armênios pelo Império Otomano (cujo espólio constitui a atual Turquia) na Primeira Guerra Mundial.
Mesmo quando soldados turcos ocuparam um terço de Chipre e expulsaram um terço da população grega, assim como quando armaram incursões ilegais no Iraque para perseguir rebeldes curdos, as forças armadas israelenses realizaram alegremente exercícios conjuntos com eles. Se esse período de colaboração inadequada tiver terminado, tanto melhor. Ainda assim, há um quê de hipocrisia quanto à forma como os israelenses descobriram de repente o histórico de “direitos humanos” e as ambições imperiais regionais de seu ex-aliado.
Falando em hipocrisia, o que você acha da forma como as palavras “ativista” e “humanitário” apareceram de repente na mídia? “Ativista” está sendo usado para descrever um grupo essencialmente de turcos e árabes, muitos deles nominalmente identificáveis como vinculados ou membros do grupo radical Irmandade Muçulmana. E “humanitário” vem sendo empregado para classificar o material que esses dignos ativistas estão querendo doar ao Hamas. Mas é realmente humanitário contribuir com um partido no poder que tem uma ideologia totalitária e racista e que recebe regularmente ajuda não humanitária da Síria e do Irã, duas das ditaduras mais retrógradas e agressivas do mundo?
Aqueles que se importam com a justiça e a autonomia para os palestinos podem querer ajudar o presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, e o premiê, Salam Fayyad, a criar as instituições de um embrião de Estado na Cisjordânia. E aqueles que se preocupam com as condições dos habitantes da Faixa de Gaza podem querer enviar comboios de ajuda às muitas operações das Nações Unidas e de ONGs que tenham um histórico comprovado de transparência e eficiência. Mas qual seria a graça? Só o Hamas, com sua violência excitante e sua retórica histérica, é verdadeiramente “autêntico”. A propósito, na semana passada, o coordenador regional especial da ONU, Robert Serry, denunciou uma série de saques de apoiadores do Hamas contra instalações genuinamente humanitárias.
Turquia e Israel querem, à sua maneira, fazer parte do
Ocidente, mas sofrem com líderes medíocres
A estupidez quase inacreditável da invasão de Israel pelo ar ao navio Mavi Marmara, com soldados equipados para atirar se entrassem em pânico, mas não preparados para conter ou reprimir uma revolta pré-planejada, gerou muito mais comentários do que a recente decisão cínica do premiê turco, Recep Tayyip Erdogan, de se tornar parceiro das manobras nucleares do presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad. Que diabos esses tais ativistas humanitários estavam fazendo em uma aliança entre a cruel teocracia iraniana falida, um demagogo turco nacionalista religioso e o Hamas?
A ocupação israelense de Gaza foi prolongada até se tornar insustentável para todos os envolvidos. O sofrimento dessa história não pode ser apagado pela simples retirada ou remediado pela entrega de ajuda. Só pode ser realmente cancelado por meio de um acordo de boa-fé para criar um Estado Palestino. Mas o Hamas é um obstáculo deliberado contra esse objetivo.
Além de serem os aliados mais íntimos dos EUA na região, Turquia e Israel têm populações grandes que querem, à sua maneira, fazer parte do “Ocidente”. Ambas sofrem com líderes medíocres, que são prisioneiros voluntários de extremistas clericais em seus próprios regimes de segunda. A Turquia não pode ser considerada europeia se não parar de mentir sobre a Armênia e não conceder plenos direitos aos curdos. Israel nunca vai ser aceito como um Estado judeu se não parar de governar outros povos contra a vontade deles. A bagunça da flotilha, jogando ex-amigos um contra o outro, só serve para obscurecer esses fatos.
CHRISTOPHER HITCHENS
é escritor, colunista da revista Vanity Fair, autor e colaborador regular do New York Times e The New York Review of Books. Escreve quinzenalmente em ÉPOCA
Espero que a esta altura Israel lamente sua colaboração passada com alguns dos piores elementos da Turquia moderna. Há não muito tempo, grupos lobistas de judeus americanos – e, dizem, até o embaixador israelense em Washington, Michael Oren – estavam fazendo um bem-sucedido lobby para o Congresso dos Estados Unidos recusar a resolução que condenava o genocídio dos armênios pelo Império Otomano (cujo espólio constitui a atual Turquia) na Primeira Guerra Mundial.
Mesmo quando soldados turcos ocuparam um terço de Chipre e expulsaram um terço da população grega, assim como quando armaram incursões ilegais no Iraque para perseguir rebeldes curdos, as forças armadas israelenses realizaram alegremente exercícios conjuntos com eles. Se esse período de colaboração inadequada tiver terminado, tanto melhor. Ainda assim, há um quê de hipocrisia quanto à forma como os israelenses descobriram de repente o histórico de “direitos humanos” e as ambições imperiais regionais de seu ex-aliado.
Falando em hipocrisia, o que você acha da forma como as palavras “ativista” e “humanitário” apareceram de repente na mídia? “Ativista” está sendo usado para descrever um grupo essencialmente de turcos e árabes, muitos deles nominalmente identificáveis como vinculados ou membros do grupo radical Irmandade Muçulmana. E “humanitário” vem sendo empregado para classificar o material que esses dignos ativistas estão querendo doar ao Hamas. Mas é realmente humanitário contribuir com um partido no poder que tem uma ideologia totalitária e racista e que recebe regularmente ajuda não humanitária da Síria e do Irã, duas das ditaduras mais retrógradas e agressivas do mundo?
Aqueles que se importam com a justiça e a autonomia para os palestinos podem querer ajudar o presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, e o premiê, Salam Fayyad, a criar as instituições de um embrião de Estado na Cisjordânia. E aqueles que se preocupam com as condições dos habitantes da Faixa de Gaza podem querer enviar comboios de ajuda às muitas operações das Nações Unidas e de ONGs que tenham um histórico comprovado de transparência e eficiência. Mas qual seria a graça? Só o Hamas, com sua violência excitante e sua retórica histérica, é verdadeiramente “autêntico”. A propósito, na semana passada, o coordenador regional especial da ONU, Robert Serry, denunciou uma série de saques de apoiadores do Hamas contra instalações genuinamente humanitárias.
Turquia e Israel querem, à sua maneira, fazer parte do
Ocidente, mas sofrem com líderes medíocres
A estupidez quase inacreditável da invasão de Israel pelo ar ao navio Mavi Marmara, com soldados equipados para atirar se entrassem em pânico, mas não preparados para conter ou reprimir uma revolta pré-planejada, gerou muito mais comentários do que a recente decisão cínica do premiê turco, Recep Tayyip Erdogan, de se tornar parceiro das manobras nucleares do presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad. Que diabos esses tais ativistas humanitários estavam fazendo em uma aliança entre a cruel teocracia iraniana falida, um demagogo turco nacionalista religioso e o Hamas?
A ocupação israelense de Gaza foi prolongada até se tornar insustentável para todos os envolvidos. O sofrimento dessa história não pode ser apagado pela simples retirada ou remediado pela entrega de ajuda. Só pode ser realmente cancelado por meio de um acordo de boa-fé para criar um Estado Palestino. Mas o Hamas é um obstáculo deliberado contra esse objetivo.
Além de serem os aliados mais íntimos dos EUA na região, Turquia e Israel têm populações grandes que querem, à sua maneira, fazer parte do “Ocidente”. Ambas sofrem com líderes medíocres, que são prisioneiros voluntários de extremistas clericais em seus próprios regimes de segunda. A Turquia não pode ser considerada europeia se não parar de mentir sobre a Armênia e não conceder plenos direitos aos curdos. Israel nunca vai ser aceito como um Estado judeu se não parar de governar outros povos contra a vontade deles. A bagunça da flotilha, jogando ex-amigos um contra o outro, só serve para obscurecer esses fatos.
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