Eleitores sem memória, política sem partidos


Por Gláucio Ary Dillon Soares - Cientista Político e Sociólogo IUPERJ
Publicado em O GLOBO, 22.20.10
A mídia brasileira descobriu, pela enésima vez, a "amnésia eleitoral". Segundo Pedro Fernandes, o Instituto Data Rio publicou dados que mostravam que somente 4% dos votantes sabiam em quem votaram para deputado federal e, em igual percentagem, para deputado estadual. Embora exista uma clara correlação entre nível educacional e lembrança, o autor nos lembra de que 53% dos que possuem educação superior não se lembravam em quem votaram, segundo pesquisa realizada pela Fundação Getúlio Vargas. O autor lembra a responsabilidade dos políticos, que contribuiriam para o esquecimento.Sem dúvida; porém, outros fatores pesam.
A experiência dos estudos policiais e criminológicos mostra que, nos alinhamentos para identificação de testemunhas, o número de pessoas colocadas no alinhamento influencia o resultado. O número conta: quanto maior, mais erros. Experimentos desse tipo minaram a fé na prova testemunhal. Fica pior: brancos identificando negros erram mais do que brancos identificando brancos, provando que há um aspecto relacional que afeta a qualidade do testemunho. A identificação funciona melhor entre semelhantes do que entre diferentes.
O esquecimento eleitoral não opera num vácuo de instituições. As instituições e a legislação eleitorais, partidárias e, no sentido amplo, políticas, podem facilitar ou dificultar o esquecimento. No Brasil, facilitam.A “amnésia eleitoral” não começa depois das eleições: começa antes. Há dois anos, Jairo Nicolau alertava para pesquisas feitas pelo IBOPE e pelo DATAFOLHA, em grandes capitais, próxima das eleições: “o percentual de eleitores que disseram não saber em quem votar na pergunta espontânea, em algumas das capitais... é muito alto, oscilando entre cerca de 30% e 80%.” Os dados permitiam concluir que o problema era nacional e não do nosso estado. Com 66%, estávamos próximos do Recife (58%); de Porto Alegre (61%) e abaixo de Belo Horizonte (79%). Não sabiam em quem votariam, deixando ver que não havia uma relação forte com um candidato ou com um partido.
O sistema eleitoral se impõe como variável invisível, mas de muito peso, sobre a memória do votante. Em sistemas com áreas geográficas mais restritas de votação há mais conhecimento sobre os candidatos. Com base nesse fator, e somente nesse fator, esperaríamos que a memória fosse melhor em eleições geograficamente menores do que nas mais amplas.O sistema partidário também pesa sobre os resultados. Além da amnésia individual também há uma amnésia partidária. É mais fácil se lembrar do partido preferido num sistema bipartidário do que num multipartidário. Não leiam nessa afirmação uma profissão de fé no sistema bipartidário, mas uma preferência por um multipartidarismo moderado, sem micropartidos.
A permanência dos políticos num só partido favorece a identificação, por parte da população, da filiação partidária de um candidato. Porém, os políticos, dentro e fora do nosso estado, mudam muito de partido. Como exemplo, o ex-governador Garotinho, se bem me lembro, já esteve no PDT, no PT, no PSB, no PMDB e atualmente milita no PR. A pouca significação dos partidos não é um fenômeno obrigatório, da natureza, mas conseqüência da pouca significação atribuída a eles por parte significativa dos políticos. O alto número de partidos e de candidatos por vaga conspira contra o voto responsável e contra a memória também. O menor número de candidatos explica porque a memória é consideravelmente melhor nas eleições majoritárias. Ari Ferreira de Queiroz, em interessante artigo, comenta que, em Goiânia, em 2004, concorreram às eleições para vereador nada menos do que 27 partidos, coligados ou não. É o esfarelamento partidário.
Desses, treze não elegeram ninguém. Quantos desses 27 comandam uma parcela significativa das identificações e preferências do eleitorado? Não são partidos políticos; são legendas de aluguel. Havia vinte candidatos para cada vaga de vereador, mas somente quatro candidatos a prefeito. Fica pior: o artigo 10º da Lei das Eleições estabelece que cada partido pode registrar até 150% do número de cadeiras disponíveis na Câmara Municipal. É uma aberração aritmética que permite a um hipotético partido receber todos os votos e deixar de eleger um terço dos candidatos que apresentou.
O segundo turno das eleições majoritárias (nas que há segundo turno) apresenta a melhor aproximação ao que acontece num sistema distrital e bipartidário. Há somente dois candidatos. Nessas eleições, a memória é superior.O olhar institucional não termina aí: ainda é fácil trocar de partido. Nosso sistema pensou os mandatos como propriedade do eleito e não do partido que o elegeu. Houve mudança legislativa para reduzir a migração que, eleição trás eleição, se observa na direção do Executivo. Deputados e senadores migram para o grupo que apóia o Presidente; deputados estaduais migram para o grupo que apóia o Governador; vereadores migram para o grupo que apóia o Prefeito. Porém, acordos internos esvaziaram essa legislação benéfica. Esses acordos anulam a oposição, enfraquecem o Legislativo, e fortalecem o Executivo.
Fica ainda pior: mesmo sem migrar de partido, os votos e o apoio dentro da Casa migram na direção do Executivo e os partidos dispõem de poucos instrumentos para manter um mínimo de fidelidade partidária. Essa prática também enfraquece o Legislativo.Podemos ir além: nossas leis e cultura política concedem supremacia ao Executivo, tornando o Legislativo pouco relevante. No Brasil, o Executivo pode legislar diretamente, através de medidas provisórias ou propor legislação que raramente é rejeitada. O contraste é grande, por exemplo, com os Estados Unidos, que levam o equilíbrio entre os poderes em sério.
O Executivo não pode apresentar projetos de lei diretamente; só pode fazê-lo através de seus legisladores. Comparativamente, os legisladores brasileiros quase não legislam.Assim, olhar para a amnésia eleitoral como um problema do eleitor ou mesmo da pobre ou inexistente relação entre o eleitor e o eleito, conduz à condenação dos dois. É injusto, porque a amnésia varia com a legislação e as instituições políticas, eleitorais e partidárias. Não podemos julgar e apedrejar eleitores (ou somente eles) se o sistema dificulta a identificação partidária e reduz o Legislativo à condição de coadjuvante político.Tem jeito! Mas o jeito passa pela reforma política.

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