Esta entrevista foi dada por Gláucio Soares a Veja em 2000. O que mudou?
Entrevista Glaucio Ary Dillon Soares
Está na hora de reagir
O sociólogo diz que o Brasil se tornou
um dos países mais violentos do mundo
e que a situação é vergonhosa
Silvio Ferraz
"Nos últimos anos, os pobres brasileiros ficaram menos pobres, mas a criminalidade aumentou cada vez mais"
O crime e a violência fazem parte do cotidiano do sociólogo Glaucio Ary Dillon Soares. Aos 65 anos, ele é um especialista no assunto. Professor titular da Universidade da Flórida, há 25 anos dá aulas sobre violência na América Latina. Atualmente, uma de suas preocupações é a criminalidade no Brasil. A cada sábado 100 brasileiros são assassinados. É o dobro desse tipo de ocorrência registrado na Austrália durante um ano inteiro. A taxa de homicídios, entre 25 e trinta para cada 100.000 habitantes, é quatro vezes mais alta do que a dos Estados Unidos. "É uma vergonha", afirma o professor. "O Brasil tornou-se um dos países mais violentos do mundo." Soares acredita que só a pobreza não explica um quadro tão ruim. "Se fosse assim, Teresina, a capital mais pobre do Brasil, seria também a mais violenta", diz. Segundo ele, investir em educação, saúde e criação de empregos ajuda muito a resolver o problema, mas para entendê-lo por inteiro é preciso observar outros fatores, como a disseminação das drogas, o tráfico de armas e a desagregação familiar.
Veja – O Brasil é um país violento por natureza?
Soares – O Brasil apresenta elevadas taxas de criminalidade em comparação com os países industrializados, mas isso não significa que o povo brasileiro seja, por índole, mais violento que os outros. Se o Brasil fosse quase uniformemente violento, seria difícil explicar por que algumas cidades têm mais crimes que outras. Ou por que, na mesma cidade, alguns bairros são mais violentos que outros. O mais correto seria dizer que o Brasil é um país com bolsões de violência. Mas há fortes razões para desconfiar que a tão celebrada cordialidade brasileira desapareceu e que estamos, sim, nos transformando num povo mais violento.
Veja – O brasileiro cordato, agradável, comunicativo não existe?
Soares – De forma geral, não existe. O brasileiro é violento porque vive e aprende numa cultura violenta. A taxa de homicídios em alguns bairros de São Paulo é de 120 por 100.000 habitantes, mais que o triplo da média nacional. Por quê? Porque nesses bairros impera uma cultura violenta. São lugares onde as relações sociais se degradaram de tal forma que o crime triunfou. Somando as mortes em assaltos e homicídios com as que resultam de atropelamentos, colisões de trânsito, suicídios, afogamentos e outros acidentes, o Brasil perde 120.000 vidas por ano. Isso é duas vezes o número de mortos na explosão atômica de Hiroshima. Se você alinhar ao comprido os 120.000 mortos, o cortejo fúnebre terá cerca de 200 quilômetros. É um quadro muito triste.
Veja – O alto índice de criminalidade é resultado da pobreza?
Soares – A relação entre pobreza e crime não é automática. Se assim fosse, Teresina, a capital mais pobre do país, seria infinitamente mais violenta que São Paulo, a mais rica. Na prática, ocorre o contrário. Também haveria milhões de brasileiros criminosos, porque há milhões de pobres no país. E, como se sabe, a imensa maioria dos pobres brasileiros é composta de gente honesta e trabalhadora, que nunca se envolveu com o crime. É fácil explicar por que alguns trabalhadores optam pelo crime. O difícil é explicar por que todos não o fazem, se é tão rendoso. Além disso, nos últimos cinqüenta anos a vida dos pobres melhorou. O analfabetismo despencou, assim como a mortalidade infantil e a pobreza absoluta. O consumo de geladeiras, televisores e mesmo automóveis chegou às classes menos favorecidas. Mesmo assim, a criminalidade aumentou. A pobreza contribui para a violência, mas é apenas uma das condições que levam ao crime.
Veja – O que mais contribui para o crime?
Soares – É uma soma de fatores, em que se inclui a desigualdade social, mas também a disseminação das drogas, o tráfico de armas e a desagregação familiar. Um problema sério é que, embora o nível de renda tenha crescido, o nível educacional brasileiro continua baixíssimo. A educação pública é péssima, quando comparada à de países como a Argentina. E está provado que há uma relação entre educação e violência. Quanto mais educado, menos violento e menos vitimado pela violência é o cidadão. Outra razão é a divinização do consumo.
Veja – O que é isso?
Soares – Vivemos numa sociedade que estimula a comparação entre as pessoas no que diz respeito à posse de bens, ao status e ao nível de vida. Isso eleva o nível de aspirações, criando uma insatisfação permanente, a despeito dos ganhos de renda. O hiato entre os desejos de consumo e a impossibilidade de satisfazê-los pode ser uma fonte geradora do crime. Esse é um fator que atinge especialmente os jovens mais pobres, que são estimulados ao consumo, mas não têm acesso a ele. A violência é a principal causa mortis entre os jovens brasileiros.
Veja – Os jovens são a faixa da população mais exposta ao crime?
Soares – Os jovens são os maiores atores, tanto como vítimas quanto como criminosos. Eles estão numa faixa etária mais exposta ao perigo. O fenômeno se verifica em todos os países e em todos os tempos para os quais há dados confiáveis. Eles se expõem mais a situações de conflito e às drogas, particularmente nos fins de semana. As estatísticas mostram que os jovens que obtêm trabalho cometem menos crimes. Os que casam e têm filhos, menos ainda. Essas condições também os ajudam a sair da delinqüência. E a grande maioria sai. Os jovens criminosos geralmente estão entre os mais pobres, menos instruídos, menos religiosos, com menos alternativas criativas (como esporte e estudo). Entre eles também há mais filhos de mães sem companheiros estáveis.
Veja – Que avaliação o senhor faz do plano federal de segurança anunciado recentemente pelo governo?
Soares – Um aspecto louvável é o governo federal ter chamado a si um problema que não é de sua competência legal, mas dos Estados. Mostrou com isso que o combate ao crime é algo que o sensibiliza. Mas o plano em si encontra-se descosturado em vários pontos. Ele foi motivado pela violência televisionada, para todo o país, do roubo e seqüestro dos passageiros do ônibus 174, no Rio de Janeiro, que culminou com o assassinato de uma passageira. Mas limita-se a afirmar que em 2002 terá reduzido a criminalidade. Como? Isso é um chute.
Veja – Que sugestões o senhor daria para corrigir esse plano?
Soares – Em Boston, um programa antigangues mobilizou polícia, igrejas, clubes, toda a comunidade – e deu certo. Ao fim de três anos, a criminalidade reduziu-se em 70%. Mas foi um programa em que cada um teve sua cota de responsabilidade. O nosso é uma bravata. A polícia tem de trabalhar de forma integrada com a comunidade. Um bandido, quando comete um crime, dificilmente guarda segredo absoluto sobre o que fez. O mais provável é contando a alguém, seja para desabafar, seja para fazer bravata. A polícia só tem acesso a esse tipo de informação se estiver entrosada com a comunidade. No Brasil ocorre o oposto disso. Aqui, em apenas 8% dos homicídios a polícia consegue reunir elementos suficientes para abrir um bom inquérito. Nos restantes 92%, não. Por medo e desconfiança da polícia, a população não colabora. É a lei do silêncio.
Veja – Qual a origem desse mutismo?
Soares – O fato de a relação entre polícia e comunidade ser podre, particularmente no Rio de Janeiro. Então, a comunidade não se sente de maneira alguma estimulada a chegar e dizer: "Olha, eu sei quem matou aquele cara ali". Precisaríamos de vinte anos para ter uma melhoria considerável no Rio. Em outros Estados, onde a polícia é menos corrupta e mais profissional, talvez isso demore menos tempo.
Veja – O que mais é preciso fazer para reduzir a criminalidade?
Soares – No caso dos homicídios, a primeira linha de combate deve ser contra as armas de fogo, que chegam a representar 80% das mortes em algumas cidades, incluindo aí os casos de suicídio. Detectores móveis de metal impedem que essas armas transitem livremente pelas ruas. Precisamos de campanhas para demonstrar que armas em casa matam muito mais gente da família que assaltantes. Você compra a arma na ilusão de que vai matar um criminoso e descobre que o filho de 8 anos foi brincar com ela e morreu. E aí? Eu estava em Brasília falando sobre isso, insistindo nisso, quando ocorreu um acidente com o filho de uma das pessoas que trabalhavam conosco. Quer dizer, é perfeitamente previsível e evitável.
Veja – O que poderiam fazer os próprios fabricantes de armas?
Soares – Os fabricantes deveriam ser obrigados a colocar fechos de segurança no gatilho. Esses dispositivos impedem muitos acidentes e suicídios. Outra medida bastante útil é fabricar armas com "DNA", uma identificação balística que permita relacionar a arma usada em um crime ao primeiro comprador.
Veja – A proibição do porte de armas deveria ser total?
Soares – Ter uma arma em casa não é um direito absoluto do cidadão, da mesma forma que ninguém tem o direito absoluto de estocar em casa um monte de C4, o explosivo plástico usado nas décadas de 70 e 80 por terroristas. Não se pode ter no porão barris do gás venenoso sarin nem uma criação de vírus. O mesmo vale para as armas de fogo. Há evidências estatísticas de que a maior facilidade de acesso às armas favorece o crescimento da criminalidade.
Veja – O senhor poderia citar um exemplo?
Soares – A taxa de mortes violentas entre os jovens abaixo de 14 anos nos Estados Unidos é mais alta que as taxas somadas de 25 países industrializados. Não se trata do fato de as crianças americanas serem ou não mais violentas que as outras, mas sim de que os meios para matar à disposição delas são, além de numerosos, mais eficientes. Em 1996, revólveres e pistolas foram usados para matar duas pessoas na Nova Zelândia, quinze no Japão, trinta na Grã-Bretanha, 106 no Canadá, 213 na Alemanha e, pasme, nada menos que 9.390 nos Estados Unidos.
Veja – E no Brasil?
Soares – Infelizmente estamos seguindo a mesma ordem de grandeza dos Estados Unidos, país considerado muito violento pelos padrões dos demais industrializados e com cerca de 100 milhões de habitantes a mais que o Brasil. Aqui, em 1995, 4.571 crianças e adolescentes morreram com armas de fogo, aproximadamente treze a cada dia. De 1979 a 1995, 44.000 já haviam morrido. Seguindo essa tendência, neste primeiro ano do novo milênio, mais 5.500 jovens morrerão violentamente com armas de fogo.
Veja – O senhor não teme que a proibição inevitavelmente gere um mercado negro de armas?
Soares – Esse mercado de certa forma já existe. Ou você acha que todas as armas em mãos de bandidos no Brasil são legalizadas? Ao contrário, a maioria é clandestina, roubada ou contrabandeada. Mas, se o preço aumentar, como é provável, deve diminuir a disponibilidade. Essa medida isoladamente vai ter um efeito pequeno, talvez a redução de 5% ao ano no número de mortes. Isso, projetado sobre quase 40.000 pessoas assassinadas, estará poupando 2.000 vidas. Acho que esse número sozinho já vale a pena.
Veja – A polícia brasileira está preparada para reprimir o crime?
Soares – Para começar, não existe um quadro policial brasileiro. Existem quadros estaduais com tremenda variação de qualidade, corrupção e competência entre as polícias. O Rio de Janeiro, por exemplo, tem uma das piores polícias quando comparado com Minas Gerais ou Distrito Federal.
Veja – A que se devem essas diferenças?
Soares – Primeiro à grande preocupação com o treinamento. O governo mineiro tem um convênio com a Universidade Federal de Minas Gerais há vinte anos, com o objetivo de melhorar o nível das polícias, mais particularmente o da PM. Os policiais hoje usam armas sofisticadas para a prevenção, mas não para a repressão. Essa é a função da polícia: impedir o crime. E usam polícia comunitária.
Veja – Nos casos mais complicados, em que se inclui o Rio de Janeiro, o que se pode fazer?
Soares – O prefeito de Nova York, Rudolph Giuliani, fez aquele programa que todo mundo cita, mas poucos conhecem, o Tolerância Zero. Ele começou com duas providências. A primeira, limpar a polícia. A de Nova York era notoriamente violenta e corrupta. E ele conseguiu. É mais fácil lá do que aqui, porque nos Estados Unidos não há proteção especial para servidor público, o que existe aqui conforme a legislação trabalhista. A segunda é que ele se reuniu com a polícia e disse: "Muito bem, vocês estão com uma boa taxa de solução de homicídio, agora eu quero ausência de homicídio". E funcionou.
Veja – O senhor acredita que seja possível fazer algo parecido nas cidades brasileiras?
Soares – É possível e tem de ser feito com urgência. Um país como o Brasil, capaz de conquistar um grau de desenvolvimento econômico até elevado em alguns setores, já deveria apresentar também um quadro de violência mais reduzido.
Está na hora de reagir
O sociólogo diz que o Brasil se tornou
um dos países mais violentos do mundo
e que a situação é vergonhosa
Silvio Ferraz
"Nos últimos anos, os pobres brasileiros ficaram menos pobres, mas a criminalidade aumentou cada vez mais"
O crime e a violência fazem parte do cotidiano do sociólogo Glaucio Ary Dillon Soares. Aos 65 anos, ele é um especialista no assunto. Professor titular da Universidade da Flórida, há 25 anos dá aulas sobre violência na América Latina. Atualmente, uma de suas preocupações é a criminalidade no Brasil. A cada sábado 100 brasileiros são assassinados. É o dobro desse tipo de ocorrência registrado na Austrália durante um ano inteiro. A taxa de homicídios, entre 25 e trinta para cada 100.000 habitantes, é quatro vezes mais alta do que a dos Estados Unidos. "É uma vergonha", afirma o professor. "O Brasil tornou-se um dos países mais violentos do mundo." Soares acredita que só a pobreza não explica um quadro tão ruim. "Se fosse assim, Teresina, a capital mais pobre do Brasil, seria também a mais violenta", diz. Segundo ele, investir em educação, saúde e criação de empregos ajuda muito a resolver o problema, mas para entendê-lo por inteiro é preciso observar outros fatores, como a disseminação das drogas, o tráfico de armas e a desagregação familiar.
Veja – O Brasil é um país violento por natureza?
Soares – O Brasil apresenta elevadas taxas de criminalidade em comparação com os países industrializados, mas isso não significa que o povo brasileiro seja, por índole, mais violento que os outros. Se o Brasil fosse quase uniformemente violento, seria difícil explicar por que algumas cidades têm mais crimes que outras. Ou por que, na mesma cidade, alguns bairros são mais violentos que outros. O mais correto seria dizer que o Brasil é um país com bolsões de violência. Mas há fortes razões para desconfiar que a tão celebrada cordialidade brasileira desapareceu e que estamos, sim, nos transformando num povo mais violento.
Veja – O brasileiro cordato, agradável, comunicativo não existe?
Soares – De forma geral, não existe. O brasileiro é violento porque vive e aprende numa cultura violenta. A taxa de homicídios em alguns bairros de São Paulo é de 120 por 100.000 habitantes, mais que o triplo da média nacional. Por quê? Porque nesses bairros impera uma cultura violenta. São lugares onde as relações sociais se degradaram de tal forma que o crime triunfou. Somando as mortes em assaltos e homicídios com as que resultam de atropelamentos, colisões de trânsito, suicídios, afogamentos e outros acidentes, o Brasil perde 120.000 vidas por ano. Isso é duas vezes o número de mortos na explosão atômica de Hiroshima. Se você alinhar ao comprido os 120.000 mortos, o cortejo fúnebre terá cerca de 200 quilômetros. É um quadro muito triste.
Veja – O alto índice de criminalidade é resultado da pobreza?
Soares – A relação entre pobreza e crime não é automática. Se assim fosse, Teresina, a capital mais pobre do país, seria infinitamente mais violenta que São Paulo, a mais rica. Na prática, ocorre o contrário. Também haveria milhões de brasileiros criminosos, porque há milhões de pobres no país. E, como se sabe, a imensa maioria dos pobres brasileiros é composta de gente honesta e trabalhadora, que nunca se envolveu com o crime. É fácil explicar por que alguns trabalhadores optam pelo crime. O difícil é explicar por que todos não o fazem, se é tão rendoso. Além disso, nos últimos cinqüenta anos a vida dos pobres melhorou. O analfabetismo despencou, assim como a mortalidade infantil e a pobreza absoluta. O consumo de geladeiras, televisores e mesmo automóveis chegou às classes menos favorecidas. Mesmo assim, a criminalidade aumentou. A pobreza contribui para a violência, mas é apenas uma das condições que levam ao crime.
Veja – O que mais contribui para o crime?
Soares – É uma soma de fatores, em que se inclui a desigualdade social, mas também a disseminação das drogas, o tráfico de armas e a desagregação familiar. Um problema sério é que, embora o nível de renda tenha crescido, o nível educacional brasileiro continua baixíssimo. A educação pública é péssima, quando comparada à de países como a Argentina. E está provado que há uma relação entre educação e violência. Quanto mais educado, menos violento e menos vitimado pela violência é o cidadão. Outra razão é a divinização do consumo.
Veja – O que é isso?
Soares – Vivemos numa sociedade que estimula a comparação entre as pessoas no que diz respeito à posse de bens, ao status e ao nível de vida. Isso eleva o nível de aspirações, criando uma insatisfação permanente, a despeito dos ganhos de renda. O hiato entre os desejos de consumo e a impossibilidade de satisfazê-los pode ser uma fonte geradora do crime. Esse é um fator que atinge especialmente os jovens mais pobres, que são estimulados ao consumo, mas não têm acesso a ele. A violência é a principal causa mortis entre os jovens brasileiros.
Veja – Os jovens são a faixa da população mais exposta ao crime?
Soares – Os jovens são os maiores atores, tanto como vítimas quanto como criminosos. Eles estão numa faixa etária mais exposta ao perigo. O fenômeno se verifica em todos os países e em todos os tempos para os quais há dados confiáveis. Eles se expõem mais a situações de conflito e às drogas, particularmente nos fins de semana. As estatísticas mostram que os jovens que obtêm trabalho cometem menos crimes. Os que casam e têm filhos, menos ainda. Essas condições também os ajudam a sair da delinqüência. E a grande maioria sai. Os jovens criminosos geralmente estão entre os mais pobres, menos instruídos, menos religiosos, com menos alternativas criativas (como esporte e estudo). Entre eles também há mais filhos de mães sem companheiros estáveis.
Veja – Que avaliação o senhor faz do plano federal de segurança anunciado recentemente pelo governo?
Soares – Um aspecto louvável é o governo federal ter chamado a si um problema que não é de sua competência legal, mas dos Estados. Mostrou com isso que o combate ao crime é algo que o sensibiliza. Mas o plano em si encontra-se descosturado em vários pontos. Ele foi motivado pela violência televisionada, para todo o país, do roubo e seqüestro dos passageiros do ônibus 174, no Rio de Janeiro, que culminou com o assassinato de uma passageira. Mas limita-se a afirmar que em 2002 terá reduzido a criminalidade. Como? Isso é um chute.
Veja – Que sugestões o senhor daria para corrigir esse plano?
Soares – Em Boston, um programa antigangues mobilizou polícia, igrejas, clubes, toda a comunidade – e deu certo. Ao fim de três anos, a criminalidade reduziu-se em 70%. Mas foi um programa em que cada um teve sua cota de responsabilidade. O nosso é uma bravata. A polícia tem de trabalhar de forma integrada com a comunidade. Um bandido, quando comete um crime, dificilmente guarda segredo absoluto sobre o que fez. O mais provável é contando a alguém, seja para desabafar, seja para fazer bravata. A polícia só tem acesso a esse tipo de informação se estiver entrosada com a comunidade. No Brasil ocorre o oposto disso. Aqui, em apenas 8% dos homicídios a polícia consegue reunir elementos suficientes para abrir um bom inquérito. Nos restantes 92%, não. Por medo e desconfiança da polícia, a população não colabora. É a lei do silêncio.
Veja – Qual a origem desse mutismo?
Soares – O fato de a relação entre polícia e comunidade ser podre, particularmente no Rio de Janeiro. Então, a comunidade não se sente de maneira alguma estimulada a chegar e dizer: "Olha, eu sei quem matou aquele cara ali". Precisaríamos de vinte anos para ter uma melhoria considerável no Rio. Em outros Estados, onde a polícia é menos corrupta e mais profissional, talvez isso demore menos tempo.
Veja – O que mais é preciso fazer para reduzir a criminalidade?
Soares – No caso dos homicídios, a primeira linha de combate deve ser contra as armas de fogo, que chegam a representar 80% das mortes em algumas cidades, incluindo aí os casos de suicídio. Detectores móveis de metal impedem que essas armas transitem livremente pelas ruas. Precisamos de campanhas para demonstrar que armas em casa matam muito mais gente da família que assaltantes. Você compra a arma na ilusão de que vai matar um criminoso e descobre que o filho de 8 anos foi brincar com ela e morreu. E aí? Eu estava em Brasília falando sobre isso, insistindo nisso, quando ocorreu um acidente com o filho de uma das pessoas que trabalhavam conosco. Quer dizer, é perfeitamente previsível e evitável.
Veja – O que poderiam fazer os próprios fabricantes de armas?
Soares – Os fabricantes deveriam ser obrigados a colocar fechos de segurança no gatilho. Esses dispositivos impedem muitos acidentes e suicídios. Outra medida bastante útil é fabricar armas com "DNA", uma identificação balística que permita relacionar a arma usada em um crime ao primeiro comprador.
Veja – A proibição do porte de armas deveria ser total?
Soares – Ter uma arma em casa não é um direito absoluto do cidadão, da mesma forma que ninguém tem o direito absoluto de estocar em casa um monte de C4, o explosivo plástico usado nas décadas de 70 e 80 por terroristas. Não se pode ter no porão barris do gás venenoso sarin nem uma criação de vírus. O mesmo vale para as armas de fogo. Há evidências estatísticas de que a maior facilidade de acesso às armas favorece o crescimento da criminalidade.
Veja – O senhor poderia citar um exemplo?
Soares – A taxa de mortes violentas entre os jovens abaixo de 14 anos nos Estados Unidos é mais alta que as taxas somadas de 25 países industrializados. Não se trata do fato de as crianças americanas serem ou não mais violentas que as outras, mas sim de que os meios para matar à disposição delas são, além de numerosos, mais eficientes. Em 1996, revólveres e pistolas foram usados para matar duas pessoas na Nova Zelândia, quinze no Japão, trinta na Grã-Bretanha, 106 no Canadá, 213 na Alemanha e, pasme, nada menos que 9.390 nos Estados Unidos.
Veja – E no Brasil?
Soares – Infelizmente estamos seguindo a mesma ordem de grandeza dos Estados Unidos, país considerado muito violento pelos padrões dos demais industrializados e com cerca de 100 milhões de habitantes a mais que o Brasil. Aqui, em 1995, 4.571 crianças e adolescentes morreram com armas de fogo, aproximadamente treze a cada dia. De 1979 a 1995, 44.000 já haviam morrido. Seguindo essa tendência, neste primeiro ano do novo milênio, mais 5.500 jovens morrerão violentamente com armas de fogo.
Veja – O senhor não teme que a proibição inevitavelmente gere um mercado negro de armas?
Soares – Esse mercado de certa forma já existe. Ou você acha que todas as armas em mãos de bandidos no Brasil são legalizadas? Ao contrário, a maioria é clandestina, roubada ou contrabandeada. Mas, se o preço aumentar, como é provável, deve diminuir a disponibilidade. Essa medida isoladamente vai ter um efeito pequeno, talvez a redução de 5% ao ano no número de mortes. Isso, projetado sobre quase 40.000 pessoas assassinadas, estará poupando 2.000 vidas. Acho que esse número sozinho já vale a pena.
Veja – A polícia brasileira está preparada para reprimir o crime?
Soares – Para começar, não existe um quadro policial brasileiro. Existem quadros estaduais com tremenda variação de qualidade, corrupção e competência entre as polícias. O Rio de Janeiro, por exemplo, tem uma das piores polícias quando comparado com Minas Gerais ou Distrito Federal.
Veja – A que se devem essas diferenças?
Soares – Primeiro à grande preocupação com o treinamento. O governo mineiro tem um convênio com a Universidade Federal de Minas Gerais há vinte anos, com o objetivo de melhorar o nível das polícias, mais particularmente o da PM. Os policiais hoje usam armas sofisticadas para a prevenção, mas não para a repressão. Essa é a função da polícia: impedir o crime. E usam polícia comunitária.
Veja – Nos casos mais complicados, em que se inclui o Rio de Janeiro, o que se pode fazer?
Soares – O prefeito de Nova York, Rudolph Giuliani, fez aquele programa que todo mundo cita, mas poucos conhecem, o Tolerância Zero. Ele começou com duas providências. A primeira, limpar a polícia. A de Nova York era notoriamente violenta e corrupta. E ele conseguiu. É mais fácil lá do que aqui, porque nos Estados Unidos não há proteção especial para servidor público, o que existe aqui conforme a legislação trabalhista. A segunda é que ele se reuniu com a polícia e disse: "Muito bem, vocês estão com uma boa taxa de solução de homicídio, agora eu quero ausência de homicídio". E funcionou.
Veja – O senhor acredita que seja possível fazer algo parecido nas cidades brasileiras?
Soares – É possível e tem de ser feito com urgência. Um país como o Brasil, capaz de conquistar um grau de desenvolvimento econômico até elevado em alguns setores, já deveria apresentar também um quadro de violência mais reduzido.
Excelente artigo!!
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