Liberdade x Igualdade: o que é mais importante para uma democracia?
Democracia chilena
Publicado em 27.01.2010
Desde o loteamento dos territórios espoliados pelos invasores europeus, no século 16, até os generais e caudilhos do século 20, a evolução política da América Latina tem encontrado poucos cenários ideais para desabrochar. No exame histórico da quase totalidade das nações, o que se vê com frequência é a tentativa de tutela das populações – inclusive por supostos líderes revolucionários – muito mais que a formação de sua autonomia, cujo avanço se dá, em regra, por pequenos passos. Por isso a imagem do Chile contemporâneo emerge com especial significado, no momento em que a escolha de um novo presidente resgata o papel da oposição e confere notável maturidade à democracia do país.
Considerada como "arte democrática", na definição do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, a política deve buscar como objetivos a retirada dos limites à liberdade dos cidadãos, bem como a autolimitação, que seria, segundo Bauman, a possibilidade de "libertar os indivíduos para capacitá-los a traçar, individual e coletivamente, seus próprios limites individuais e coletivos". Embora o sociólogo acredite que esta segunda finalidade tenha se perdido, no que poderia ser chamado, a partir de sua visão crítica, de "estreitamento" da democracia liberal, podemos aproveitar a definição para lançar luz sobre a eleição chilena e sua relevância para a política latino-americana.
Após duas décadas de hegemonia e quatro governos da aliança de centro-esquerda Concertação, com uma presidente, Michelle Bachelet, com quase 80% de aprovação, e como candidato à sucessão um ex-presidente deste período hegemônico – Eduardo Frei – os chilenos protagonizaram nas urnas uma clássica mudança democrática. A "fadiga de material" socialista (ou social-democrata, ou social-liberal, como se queira) é evidente no país que elegeu Sebastián Piñera como novo presidente. A última vez que um representante de partido conservador venceu as eleições presidenciais foi em 1958. A vitória de Piñera demonstra, além da disposição do eleitorado em favor da troca na condução dos destinos nacionais, a superação do trauma da ditadura de Augusto Pinochet. Deste modo, a alternância do poder que se registra no Chile marca o grau de autonomia delineado por Bauman para a "arte democrática", tornando patente a consolidação da democracia chilena.
Numa votação apertada, o empresário de aviação e comunicações Sebastián Piñera, tido como o indivíduo mais rico do país, com patrimônio avaliado em 1 bilhão de dólares, derrotou o ex-presidente Frei com 52% da preferência dos eleitores, contra 48% do opositor. A diferença foi de 220 mil votos, num universo de 7 milhões de eleitores. Piñera já havia disputado a presidência em 2006, quando perdeu para Michelle Bachelet no segundo turno. O empresário tomará posse no dia 11 de março, com a difícil missão manter o patamar de aprovação interna e externa de Bachelet, que também detém o reconhecimento internacional por seu trabalho. Além disso, assumirá sob a expectativa de recuperar a economia do país, que tem crescido a um ritmo menor em um ambiente de preocupação com o aumento do desemprego. Apesar da alta taxa de aprovação, Bachelet começava a se deparar com dificuldades, num campo em que os resultados imediatos costumam se refletir na contagem de votos.
Tão importante quanto o cumprimento da agenda de campanha – o presidente eleito prometeu, entre outras coisas, gerar um milhão de empregos, ampliar o efetivo da segurança, melhorar a educação pública e promover a energia sustentável – será a continuidade da confiança nas instituições democráticas. Na frágil constituição institucional do continente, alvo fácil do populismo e de aventuras antidemocráticas, o Chile mantém-se como exemplo de estabilidade econômica e de amadurecimento político, exalando bons ventos para os demais países da região. Sobre a vitória de Piñera, fica a lição de que os eleitores são livres para discordar, inclusive quando concordam majoritariamente com os rumos que estão sendo seguidos – e essa liberdade, manifestada coletivamente pelo direito ao voto, é um dos pressupostos elementares da democracia.
Editorial do Jornal do Commercio, 27 de janeiro de 2010
Publicado em 27.01.2010
Desde o loteamento dos territórios espoliados pelos invasores europeus, no século 16, até os generais e caudilhos do século 20, a evolução política da América Latina tem encontrado poucos cenários ideais para desabrochar. No exame histórico da quase totalidade das nações, o que se vê com frequência é a tentativa de tutela das populações – inclusive por supostos líderes revolucionários – muito mais que a formação de sua autonomia, cujo avanço se dá, em regra, por pequenos passos. Por isso a imagem do Chile contemporâneo emerge com especial significado, no momento em que a escolha de um novo presidente resgata o papel da oposição e confere notável maturidade à democracia do país.
Considerada como "arte democrática", na definição do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, a política deve buscar como objetivos a retirada dos limites à liberdade dos cidadãos, bem como a autolimitação, que seria, segundo Bauman, a possibilidade de "libertar os indivíduos para capacitá-los a traçar, individual e coletivamente, seus próprios limites individuais e coletivos". Embora o sociólogo acredite que esta segunda finalidade tenha se perdido, no que poderia ser chamado, a partir de sua visão crítica, de "estreitamento" da democracia liberal, podemos aproveitar a definição para lançar luz sobre a eleição chilena e sua relevância para a política latino-americana.
Após duas décadas de hegemonia e quatro governos da aliança de centro-esquerda Concertação, com uma presidente, Michelle Bachelet, com quase 80% de aprovação, e como candidato à sucessão um ex-presidente deste período hegemônico – Eduardo Frei – os chilenos protagonizaram nas urnas uma clássica mudança democrática. A "fadiga de material" socialista (ou social-democrata, ou social-liberal, como se queira) é evidente no país que elegeu Sebastián Piñera como novo presidente. A última vez que um representante de partido conservador venceu as eleições presidenciais foi em 1958. A vitória de Piñera demonstra, além da disposição do eleitorado em favor da troca na condução dos destinos nacionais, a superação do trauma da ditadura de Augusto Pinochet. Deste modo, a alternância do poder que se registra no Chile marca o grau de autonomia delineado por Bauman para a "arte democrática", tornando patente a consolidação da democracia chilena.
Numa votação apertada, o empresário de aviação e comunicações Sebastián Piñera, tido como o indivíduo mais rico do país, com patrimônio avaliado em 1 bilhão de dólares, derrotou o ex-presidente Frei com 52% da preferência dos eleitores, contra 48% do opositor. A diferença foi de 220 mil votos, num universo de 7 milhões de eleitores. Piñera já havia disputado a presidência em 2006, quando perdeu para Michelle Bachelet no segundo turno. O empresário tomará posse no dia 11 de março, com a difícil missão manter o patamar de aprovação interna e externa de Bachelet, que também detém o reconhecimento internacional por seu trabalho. Além disso, assumirá sob a expectativa de recuperar a economia do país, que tem crescido a um ritmo menor em um ambiente de preocupação com o aumento do desemprego. Apesar da alta taxa de aprovação, Bachelet começava a se deparar com dificuldades, num campo em que os resultados imediatos costumam se refletir na contagem de votos.
Tão importante quanto o cumprimento da agenda de campanha – o presidente eleito prometeu, entre outras coisas, gerar um milhão de empregos, ampliar o efetivo da segurança, melhorar a educação pública e promover a energia sustentável – será a continuidade da confiança nas instituições democráticas. Na frágil constituição institucional do continente, alvo fácil do populismo e de aventuras antidemocráticas, o Chile mantém-se como exemplo de estabilidade econômica e de amadurecimento político, exalando bons ventos para os demais países da região. Sobre a vitória de Piñera, fica a lição de que os eleitores são livres para discordar, inclusive quando concordam majoritariamente com os rumos que estão sendo seguidos – e essa liberdade, manifestada coletivamente pelo direito ao voto, é um dos pressupostos elementares da democracia.
Editorial do Jornal do Commercio, 27 de janeiro de 2010
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