A geografia do medo
Jornal do Brasil, 22 de dezembro de 2009
Glaucio Soares
CIENTISTA POLÍTICO
Há uma relação espacial entre a residência, por um lado, e o sentimento de insegurança e o medo do crime, pelo outro. Os dados brasileiros analisados até hoje revelam que a rua da residência é onde os entrevistados se sentem mais seguros (e têm menos medo do crime), seguida pelas ruas vizinhas, pelo bairro de residência, por bairros vizinhos etc. Algumas pesquisas de âmbito nacional mostram que as grandes cidades inspiram menos segurança (e mais medo) e que as capitais inspiram ainda menos segurança (e mais medo) – nas pessoas que moram fora delas.
Dados de uma pesquisa patrocinada pelo Instituto de Segurança Pública (ISP) no Rio de Janeiro mostram que entre 85% e 87% da população acreditam que o crime aumentou no Brasil, no estado e na cidade do Rio de Janeiro; porém, somente 45% acham que tenha aumentado no seu bairro e apenas 30% na sua rua.
Essa tendência segue uma tradição espacial em criminologia que é circular, e tem ampla aplicação. É chamada teoria dos círculos concêntricos.
A probabilidade de que um criminoso cometa um crime diminui com a distância da sua residência; a probabilidade de que uma criança ou um idoso desorientado esteja em um espaço diminui com a distância do local em que vive, seja residência, asilo ou orfanato, e assim por diante. Essa tradição também se aplica a microespaços.
O número de homicídios cresce à medida que nos aproximamos de bares, biroscas e botequins onde bebidas alcoólicas são servidas, relação que deu origem à lei seca em vários lugares.
Contudo, os bairros e outras áreas não seguem um formato circular. A principal virtude da terminologia circular é deixar claro, de maneira gráfica, que as pessoas acham que, quanto mais longe de um local conhecido, maior o risco de que alguma coisa negativa aconteça, sendo aplicável tanto à insegurança e ao medo quanto a ações criminosas.
Porém, a relação não é monotônica, não aumenta de maneira igual a cada quilômetro de distância.
Há limites, há pontos de corte, além dos quais não há decréscimo da sensação de segurança, nem aumento do medo.
Muitas pesquisas reproduziram, de maneira rotineira, baterias de perguntas semelhantes, com base na residência de quem respondia. Elas sugerem as teorias das áreas (ou círculos) concêntricas. O centro de segurança é a residência. Porém, se essa relação espacial tiver uma dimensão psicológica – e acreditamos que tem – baseada na familiaridade e no conhecimento direto ou interpessoal, pode haver outros portos seguros, na avaliação das pessoas. Outras áreas conhecidas e familiares, como o local de trabalho, de estudo, ou a moradia de familiares e amigos que são visitados com frequência, podem ser centros de áreas concêntricas da segurança. Quanto mais perto delas, menos medo.
Se aceitarmos a existência de múltiplos focos de segurança, surgirão as comparações entre eles. Em princípio, não há por que eles devam ter igual intensidade. Uns podem gerar mais segurança do que outros, e a distância segura, que seriam raios na imagem dos círculos concêntricos, também pode ter tamanhos diferentes. Até agora, nenhum conhecimento obriga a que sejam iguais.
A essas dimensões espaciais é necessário agregar uma temporal.
O sentimento de segurança (ou o medo) talvez aumente com o tempo de permanência (ou o número de visitas). A relação entre o tempo de permanência (por exemplo, na residência) e o sentimento de segurança não é conhecida. Intuitivamente supomos que a segurança aumenta com o tempo (usado como medida substituta do conhecimento e da familiaridade), mas não há razão para que essa relação seja aditiva e simples. Exemplificando, nada impede que a sensação de segurança cesse de aumentar depois de um tempo numa residência. Não obstante, essa é outra pesquisa.
As balas perdidas e sua divulgação mudaram radicalmente a geografia do medo. Podemos ser feridos e mortos dentro de casa ou apartamento, na rua em frente.
Estatisticamente, a probabilidade de que sejamos atingidos dentro de casa é muito baixa, mas o medo e a insegurança não seguem de perto o risco e a probabilidade.
Assaltos em áreas antes tidas como seguras e, sobretudo, as balas perdidas mudaram a geografia do medo. Cresceram os pontos de referência negativos.
Assim como há pontos de segurança, há pontos de insegurança.
As favelas, em geral, sobretudo as percebidas como mais violentas, são pontos negativos. O crescimento de favelas ou da violência dentro delas reduz o valor de mercado dos imóveis e dos aluguéis. Afasta compradores e inquilinos. A violência não é objetiva, mas, tal qual percebida, as pessoas querem ficar longe dela.
A geografia do medo retoma a tradição das análises espaciais nas ciências humanas. Faltam pesquisas para que possamos distinguir fato de ficção e conhecer as relações entre os dois.
Glaucio Soares
CIENTISTA POLÍTICO
Há uma relação espacial entre a residência, por um lado, e o sentimento de insegurança e o medo do crime, pelo outro. Os dados brasileiros analisados até hoje revelam que a rua da residência é onde os entrevistados se sentem mais seguros (e têm menos medo do crime), seguida pelas ruas vizinhas, pelo bairro de residência, por bairros vizinhos etc. Algumas pesquisas de âmbito nacional mostram que as grandes cidades inspiram menos segurança (e mais medo) e que as capitais inspiram ainda menos segurança (e mais medo) – nas pessoas que moram fora delas.
Dados de uma pesquisa patrocinada pelo Instituto de Segurança Pública (ISP) no Rio de Janeiro mostram que entre 85% e 87% da população acreditam que o crime aumentou no Brasil, no estado e na cidade do Rio de Janeiro; porém, somente 45% acham que tenha aumentado no seu bairro e apenas 30% na sua rua.
Essa tendência segue uma tradição espacial em criminologia que é circular, e tem ampla aplicação. É chamada teoria dos círculos concêntricos.
A probabilidade de que um criminoso cometa um crime diminui com a distância da sua residência; a probabilidade de que uma criança ou um idoso desorientado esteja em um espaço diminui com a distância do local em que vive, seja residência, asilo ou orfanato, e assim por diante. Essa tradição também se aplica a microespaços.
O número de homicídios cresce à medida que nos aproximamos de bares, biroscas e botequins onde bebidas alcoólicas são servidas, relação que deu origem à lei seca em vários lugares.
Contudo, os bairros e outras áreas não seguem um formato circular. A principal virtude da terminologia circular é deixar claro, de maneira gráfica, que as pessoas acham que, quanto mais longe de um local conhecido, maior o risco de que alguma coisa negativa aconteça, sendo aplicável tanto à insegurança e ao medo quanto a ações criminosas.
Porém, a relação não é monotônica, não aumenta de maneira igual a cada quilômetro de distância.
Há limites, há pontos de corte, além dos quais não há decréscimo da sensação de segurança, nem aumento do medo.
Muitas pesquisas reproduziram, de maneira rotineira, baterias de perguntas semelhantes, com base na residência de quem respondia. Elas sugerem as teorias das áreas (ou círculos) concêntricas. O centro de segurança é a residência. Porém, se essa relação espacial tiver uma dimensão psicológica – e acreditamos que tem – baseada na familiaridade e no conhecimento direto ou interpessoal, pode haver outros portos seguros, na avaliação das pessoas. Outras áreas conhecidas e familiares, como o local de trabalho, de estudo, ou a moradia de familiares e amigos que são visitados com frequência, podem ser centros de áreas concêntricas da segurança. Quanto mais perto delas, menos medo.
Se aceitarmos a existência de múltiplos focos de segurança, surgirão as comparações entre eles. Em princípio, não há por que eles devam ter igual intensidade. Uns podem gerar mais segurança do que outros, e a distância segura, que seriam raios na imagem dos círculos concêntricos, também pode ter tamanhos diferentes. Até agora, nenhum conhecimento obriga a que sejam iguais.
A essas dimensões espaciais é necessário agregar uma temporal.
O sentimento de segurança (ou o medo) talvez aumente com o tempo de permanência (ou o número de visitas). A relação entre o tempo de permanência (por exemplo, na residência) e o sentimento de segurança não é conhecida. Intuitivamente supomos que a segurança aumenta com o tempo (usado como medida substituta do conhecimento e da familiaridade), mas não há razão para que essa relação seja aditiva e simples. Exemplificando, nada impede que a sensação de segurança cesse de aumentar depois de um tempo numa residência. Não obstante, essa é outra pesquisa.
As balas perdidas e sua divulgação mudaram radicalmente a geografia do medo. Podemos ser feridos e mortos dentro de casa ou apartamento, na rua em frente.
Estatisticamente, a probabilidade de que sejamos atingidos dentro de casa é muito baixa, mas o medo e a insegurança não seguem de perto o risco e a probabilidade.
Assaltos em áreas antes tidas como seguras e, sobretudo, as balas perdidas mudaram a geografia do medo. Cresceram os pontos de referência negativos.
Assim como há pontos de segurança, há pontos de insegurança.
As favelas, em geral, sobretudo as percebidas como mais violentas, são pontos negativos. O crescimento de favelas ou da violência dentro delas reduz o valor de mercado dos imóveis e dos aluguéis. Afasta compradores e inquilinos. A violência não é objetiva, mas, tal qual percebida, as pessoas querem ficar longe dela.
A geografia do medo retoma a tradição das análises espaciais nas ciências humanas. Faltam pesquisas para que possamos distinguir fato de ficção e conhecer as relações entre os dois.
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