DEMOCRACIA EM CRISE?
Democracia em crise?
Por José Maria Nóbrega –
cientista político
A democracia como forma
de governo está em crise?
Muitos são os cientistas
políticos que afirmam estar em crise à democracia.
Será que, realmente, a
democracia está em crise ou a própria democracia é uma forma de governo em
constante crise?
Mas, afinal, o que é
democracia? Como podemos conceituar ou definir um conceito tão complexo e
polissêmico como o de democracia?
Existe algum conceito de
democracia universal? Ou Universalmente aceito?
Para os liberais,
democracia significa representação e limite de poder. Para os socialistas,
democracia é a vontade popular direta, sem representantes e/ou divisão de poder,
é a máxima da tirania da maioria.
Contudo, a democracia é
um conceito antigo, não é moderno como os conceitos de liberalismo e
socialismo. Ela nasce numa discussão clássica das formas de governo no período
antigo das histórias de Grécia e de Roma.
Para conceituar
democracia na contemporaneidade, temos que fazer uma regressão às origens da
democracia na modernidade, ou a sua reinvenção moderna.
A democracia como forma
de governo, do governo do povo ou da maioria, é uma invenção da antiguidade,
como dito. É na antiguidade clássica, principalmente nas tipologias gregas, que
ela tem origem. A democracia direta e instável.
A democracia tal qual a
conhecemos é uma experiência moderna e tem origem nos resultados promovidos
pelas revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII. Primeiro, as revoluções
burguesas promoveram o Estado liberal e os mecanismos de freios ao poder. Os
limites do governo serão suas primeiras e principais características. A
oligarquia competitiva. Depois, com a introdução do sufrágio universal (ou
quase universal), os limites às tentações da tirania da maioria implícita na
genética da democracia (tal qual definida por Rousseau e os marxistas) são
instalados.
A democracia
contemporânea é um “mix” de componentes liberais e eleitorais que produzem o
Poder sob regras de limites e freios que impedem, ou devem impedir, a tirania.
Esse “mix” geralmente vem a reboque do que Adam Przeworski chamou de “check
list”: que são “eleições competitivas, direitos de expressão e associação
assegurados por lei e Estado de direito”. Contudo, esse check list não é
trivial e pode ser aumentado conforme a visão de democracia se aproxima de uma
visão mais normativa desta.
São nos clássicos da
modernidade que vamos ter o início da construção do conceito de democracia
contemporânea. Quando os liberais, desconfiados da democracia (clássica),
elaboram os princípios dos limites e separação dos poderes, sobretudo com a
ascensão dos regimes republicanos. Evitar a tirania da maioria e a tendência
autoritária dos governantes (Poder Executivo) foi o ponto nevrálgico da
democracia moderna.
Os mecanismos de freios e
contrapesos adotados pelos “pais” da constituição americana é um dos
dispositivos mais importantes da democracia tal qual a conhecemos hoje.
Controlar o príncipe é a forma pela qual a democracia incorporou esses
mecanismos de controle. É necessário limitar o Executivo com o controle pelo
Legislativo e deste pelo Judiciário, um poder judiciário independente do poder
político. É claro que a fórmula de equilíbrio não é das mais claras e sempre há
tendências a crises entre os poderes.
Retomando o check list de
Przeworski, é fundamental entendermos a democracia como uma lista de
procedimentos. Contudo, diferente do pragmatismo de Schumpeter e de Downs, o
sucesso do método democrático, ou poliárquico conforme Dahl, não é tão simples
como se imagina que seja. A história, o path dependence, os entraves
institucionais, sobretudo em novas poliarquias que passaram por regimes
autoritários, a exemplo de muitos países da América Latina, são obstáculos que
comprometem à consolidação democrática, a dificultando.
Entraves autoritários,
veto players do antigo regime, nas instituições de representação impedem o
avanço dos regimes políticos para democracias consolidadas.
Fraco componente liberal,
falta de acomodação entre as elites políticas (de todos os espectros ideológicos)
em torno das regras do jogo da democracia, oposição destrutiva (ou perseguição
e impedimentos à oposição), corrupção, impunidade, criminalidade, judiciário
ativista, tudo isso pode implicar em regimes de frágeis democracias, ou
semidemocracias conforme o termo definido por Mainwaring et al (2001).
A maioria dos cientistas
políticos adota a definição eleitoral, ou submínima, da democracia. Como em
Przeworski (2019), adotam a seguinte definição:
“democracia
é um arranjo político no qual as pessoas escolhem governos por meio de eleições
e têm uma razoável possibilidade de remover governos de que não gostem (...).
Democracia é simplesmente um sistema no qual ocupantes do governo perdem
eleições e vão embora quando perdem”. (p. 29).
Essa “razoável possibilidade
de remover governos que não gostem” não fica clara em sua essência, sendo
assim, retórica. Przeworski (2019) continua na construção do seu conceito
afirmando que ameaças às eleições que as tornam não competitivas “podem incluir
violações das precondições para eleições competitivas enumeradas por Dahl” (p.
29), mas o seu foco é no processo eleitoral. Nada diz a respeito do Estado de
direito além dos direitos que venham garantir eleições livres e limpas. Pode
existir eleições livres e limpas, mas com graves violações ao Estado de direito
como vemos, por exemplo, nas poliarquias latino-americanas.
Para a América Latina, o
conceito construído por Przeworski é insuficiente. As crises na região vão
muito além das instituições que passam pelo crivo eleitoral. A não-consolidação
da democracia na região não poder ser vista pelo conceito submínimo do
eleitoralismo.
Os dispositivos de freios
e contrapesos não são tão firmes quanto parece ao olhar desatento do observador
formal. Por isso, mostra-se fundamental construir o conceito de democracia
procedimental acrescentando a qualidade do Estado de direito (muito além dos
direitos de associação e de expressão rudimentares da teoria procedimental
schumpeteriana, dahlsiana, downsiana e przeworskiana).
Uma definição
procedimental da democracia precisa inserir, além dos procedimentos eleitorais
encontrados na literatura, as condições do componente liberal do Estado de
direito como o construído por O´Donnell (1998 e 1999), mas de forma mais
pragmática. Substituindo conceitos abstratos por indicadores mensuráveis.
Democracia sem Estado de
direito, ou com Estado de direito muito limitado, está condicionada a constante
crise de legitimidade e de governabilidade. Muitas das democracias
latino-americanas e do leste europeu são, na verdade, regimes híbridos
promotores de eleições. Alguns países são regimes semiautoritários conforme a
teoria desenvolvida por Ottaway (2003), a exemplo da Rússia, do Egito e da Venezuela.
Promovem eleições, mas o componente liberal é praticamente inexistente e nesses
países impera atividades fora da lei, antirrepublicanas, criminosas, com
altíssimo nível de impunidade e com o alto escalão dos governos sem ser
alcançado pela regra de igualdade perante às leis tão cara ao componente
liberal das democracias.
Dito tudo isto, chego à
conclusão que a democracia na maior parte dos países que adotaram eleições
minimamente competitivas está em crise não pelas instituições eleitorais per
si (sistema eleitoral, partidos políticos, parlamento), mas pela lacuna do
Estado de direito que está na base do sucesso das democracias mais avançadas.
Estas que suportam suas intempéries de forma mais consistente, diferente das
semidemocracias e dos regimes semiautoritários em constante crise.
Referências:
DAHL, Robert (2005),
Poliarquia. EDUSP. São Paulo.
DOWNS, Anthony (2013).
Uma teoria econômica da democracia. Edusp. São Paulo.
MAINWARING, Scott;
BRINKS, Daniel e PÉREZ-LIÑAN, Aníbal (2001). “Classificando regimes políticos
na América Latina” in Dados, vol. 44. n. 4, pp. 645-687.
O´DONNELL, Guillermo
(1998). Accountability horizontal e novas poliarquias. Lua Nova. N. 44.
O´DONNELL, Guillermo
(1999). “Teoria Democrática e Política
Comparada”. Dados. V. 42. N. 4. Rio de Janeiro.
OTTAWAY, Marina (2003)
Democracy Challenged. The rise of Semi-authoritarianism. Washington, D.C., EUA,
Carnegie Endowment for International Peace.
PRZEWORSKI, Adam (2019).
Crises da democracia. Zahar Editores. Rio de Janeiro.
SCHUMPETER, Joseph (1984), Capitalismo, Socialismo e Democracia. Zahar Editores.Rio de Janeiro.
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