Os homicídios ocultos em Pernambuco
Os
homicídios ocultos em Pernambuco
José Maria Nóbrega Jr. – Doutor em Ciência Política
pela UFPE, Professor Adjunto da UFCG e Coordenador do Núcleo de Estudos da
Violência da UFCG - NEVU.
Trabalho publicado em
2013 como texto para discussão do IPEA[1], intitulado “Mapa dos
Homicídios Ocultos no Brasil”, de autoria do economista Daniel Cerqueira,
demonstra como boa parte das mortes violentas consideradas como “causa
indeterminada” na verdade foram mortes violentas letais e intencionais. O autor
utilizou o banco de dados do SIM (Subsistema de Informação de Mortalidade) do
SUS (Sistema Único de Saúde) para analisar os dados de “mortes por agressão”,
numa série temporal de 1996 a 2010. Para isso, foram analisadas as
características socioeconômicas e situacionais associadas a cada uma das quase
1,9 milhão de mortes violentas registradas naquele período. Descobriu-se que
18,3% das mortes por “causa indeterminada”, ou 8.600 mortes, seriam de
homicídios que ficaram ocultos nas cifras oficiais dos dados do sistema de
saúde.
Os
cálculos estatísticos e econométricos executados por Cerqueira mostraram ainda
que o crescimento substancial da taxa de homicídios em muitos estados
brasileiros, com particular destaque para a região Nordeste, na verdade não
ocorreram, pois os índices oficiais foram conduzidos pela diminuição da
subnotificação, resultado da melhoria do processo de catalogação dos dados no
Nordeste. Contudo, verificou-se preocupante aumento das mortes violentas cuja
intenção não foi determinada em alguns estados brasileiros, com destaque para
Rio de Janeiro; Bahia; Rio Grande do Norte; Pernambuco; Roraima; Minas Gerais e
São Paulo.
O
foco desta análise será o estado de Pernambuco, sobretudo no período entre 2007
e 2010, período este no qual o governo daquele estado implementou um programa
de segurança pública específico, o Pacto Pela Vida (PPV), que visava reduzir os
homicídios no Estado em 12% ao ano.
Os
homicídios ocultos são todas as mortes que, a priori, eram consideradas mortes
violentas por “causa indeterminada”. Esta acontece quando o sistema de saúde
pública local não consegue identificar a causa primeira que levou ao processo
mórbido (Cerqueira, 2013: p. 7).
“Nos países
desenvolvidos, a morte violenta indeterminada é um fenômeno atípico. No Brasil,
contudo, em 2010, cerca de 10,3% do total destas mortes foram assim
classificadas, revelando uma grave disfuncionalidade no sistema de produção de
informações sobre os óbitos violentos” (idem, 7).
A
presente análise busca destacar os dados analisados por Cerqueira (2013) para o
caso de Pernambuco em específico. Para tal, inicialmente detalharemos a
metodologia utilizada por este autor para trabalhar os dados de Homicídios
Ocultos (HOs) e como se chegou a definir esta variável. Numa outra seção
analisaremos os dados de Pernambuco dos HOs em relação aos dados de Homicídios
oficiais registrados pelo mesmo banco de dados utilizado por Cerqueira (2013).
Por fim, a conclusão com os principais resultados alcançados.
Metodologia
do estudo de Cerqueira (2013)
Como
frisei na introdução, Cerqueira (2013) utilizou o banco de dados do SIM para
efetivar seu estudo sobre os Homicídios Ocultos (HOs).
“O SIM foi desenvolvido pelo
Ministério da Saúde (MS) em 1975 e informatizado em 1979. Em 1991, com a
implantação do Sistema Único de Saúde (SUS) e a subjacente premissa de
descentralização, a coleta de dados foi repassada à atribuição dos estados e
municípios, por meio das suas respectivas secretarias de saúde. Até 1995, o SIM
adotou a 9ª Revisão da Classificação de Doenças (CID-9) quando, a partir daí,
empregou-se a Classificação Internacional de Doenças (CID-10)” (p. 08).
O
trabalho concentrou-se nas mortes não naturais por causas externas, com foco
especial nas mortes violentas por acidente ou morte suspeita (indeterminada)
que o autor utilizou como proxy para
os HOs.
Estas
mortes chegam a ser classificadas como “morte violenta indeterminada” quando o
preenchimento da declaração de óbito (DO) por parte do médico legista não é
esclarecedor. Daí, quando a DO chega às secretarias de saúde e os codificadores
não tem informações suficientes para compor o cadastro, coloca a morte como
indeterminada, dependendo, desde aquele momento, recorrer ao IML[2] para ter acesso ao laudo
de exame cadavérico e mais informações junto à polícia civil.
Incidentes
onde a causa básica do óbito não é clara, a informação junto à polícia é
crucial. Contudo, há várias dificuldades em ter este acesso junto àquela
instituição coercitiva (CERQUEIRA, 2013: p. 09).
Cerqueira
analisou os óbitos violentos analisando as características socioeconômicas das
vítimas. Essas características ligadas a raça/cor da pele e ao nível de
escolaridade. As mortes violentas por causas externas foram classificadas em
quatro categorias:
1.
Determinada não resultante de agressões,
que corresponde à união dos incidentes ocasionados por acidentes e suicídios;
2.
Homicídios ou agressões;
3.
Indeterminada;
4.
Outros óbitos.
Na
categoria “indeterminada” – foco de nossa análise – Cerqueira classificou
segundo os instrumentos do possível incidente:
1.
Perfurante – mortes ocasionadas por
objetos perfurantes ou cortantes;
2.
Contundente – mortes ocasionadas por
objetos como paus, pedras e outros, o que pode provocar a morte sob várias
ações, como golpe, pancada, pontapé e mordedura;
3.
Enforcamento – agregando também os
estrangulamentos;
4.
Fogo – óbitos ocasionados por inalação de
fumaça por consequência do fogo e incêndio;
5.
Envenenamento – ingestão de uma grande
variedade de substâncias, como álcool, drogas psicoativas, medicamentos,
solventes et cetera;
6.
Perfuração por arma de fogo – PAF.
No
texto original, Cerqueira despreza as mortes que não foram catalogadas
oficialmente pelo banco de dados do SIM. No que se referem à qualidade da
informação produzida em cada unidade federativa, duas métricas foram consideradas
na metodologia de análise: 1. O índice de mortes violentas indeterminadas e 2.
A proporção de informações socioeconômicas e situacionais não preenchidas[3] (p. 14).
Os
dados de mortes indeterminadas foram avaliados em termos de taxas por cada grupo
de 100 mil habitantes. As duas variáveis analisadas para averiguar os HOs foram
a causa definida da morte e os dados socioeconômicos (sexo, idade, raça, estado
civil e grau de escolaridade da vítima).
Dos
1.898 milhões de assassinatos ocorridos entre 1996 e 2010, o Estado não
conseguiu definir a causa básica da mortalidade em 174.233 homicídios. O que
corresponde a 9,18% dos casos. Nas estatísticas trabalhadas, os estados foram
divididos em três categorias e classificados pela qualidade dos dados. O primeiro
grupo de estados com menor prevalência de mortes indeterminadas foram: Acre,
Alagoas, Amapá, Amazonas, Distrito Federal, Espírito Santo, Goiás, Maranhão,
Mato Grosso do Sul, Pará, Paraíba, Piauí, Paraná, Santa Catarina e Tocantins. O
segundo grupo de estados numa zona intermediária de dados de mortes
indeterminadas foram: Ceará, Mato Grosso, Rio Grande do Sul, Rondônia e
Sergipe. E o terceiro grupo dos estados com maiores índices de mortes
indeterminadas foram: Bahia, Minas Gerais, Pernambuco,
Rio Grande do Norte, Rio de Janeiro, Roraima e São Paulo. Em Pernambuco, a
piora dos dados se apresentou nos últimos anos da série histórica.
Em
Pernambuco há altas taxas de mortes indeterminadas com baixas taxas de
desconhecimento sobre o instrumento utilizado na morte, com os dados se
deteriorando a partir de 2007[4]. Os dados de Pernambuco
são elencados abaixo e serão, em seção específica, comparados com os dados
determinados pelo SIM. (Cf. Quadro 1).
Quadro 1. Taxa de mortes indeterminadas por
100 mil habitantes em Pernambuco (2000-2010)[5]
2000
|
2001
|
2002
|
2003
|
2004
|
2005
|
2006
|
2007
|
2008
|
2009
|
2010
|
3,8
|
3,6
|
4,2
|
4,1
|
5,4
|
5,8
|
6
|
6,6
|
6,9
|
7,2
|
7,4
|
Fonte: MS/SVS/Dasis/SIM. Taxas calculadas
por Cerqueira (2013).
Resultados
da análise em relação ao Estado de Pernambuco
Os
dados de homicídios ocultos e homicídios registrados em Pernambuco serão
analisados separadamente nesta seção. Os indicadores mostram que as taxas de
mortes indeterminadas são crescentes em Pernambuco entre 2000 e 2010 e que esse
crescimento refletiu no quantitativo de homicídios ocultos em relação aos
homicídios registrados oficialmente pelo Sistema de Informação de Mortalidade
(SIM. Cf. gráfico 1).
Gráfico 1. Taxa de mortes indeterminadas
como proporção do total de mortes por causas externas em Pernambuco (2000-2010)
Fonte: MS/SVS/Dasis/SIM. Taxas calculadas
por Cerqueira (2013).
O
gráfico 2 mostra as taxas de homicídios em Pernambuco e a queda dos dados, com
destaque para o período 2007-2010. Justamente neste período de redução há um
incremento nos números absolutos de homicídios ocultos. Conforme pode ser visto
no Quadro 2.
Gráfico 2. Taxas de homicídios em
Pernambuco (2000-2010)
Fonte: SIM. Cálculo das taxas do autor.
Quadro 2. Número de homicídios ocultos em
Pernambuco x Número de homicídios registrados em Pernambuco; soma dos HOs com
os HRs e a diferença percentual (2000-2010)
dados
|
2000
|
2001
|
2002
|
2003
|
2004
|
2005
|
2006
|
2007
|
2008
|
2009
|
2010
|
HOs
|
168
|
153
|
188
|
186
|
251
|
305
|
308
|
367
|
416
|
479
|
494
|
HRs
|
4290
|
4709
|
4396
|
4517
|
4174
|
4329
|
4470
|
4556
|
4444
|
3961
|
3470
|
Soma
|
4458
|
4862
|
4584
|
4703
|
4425
|
4634
|
4778
|
4923
|
4860
|
4440
|
3964
|
Dif.
%
|
4%
|
3,3%
|
4,2%
|
4%
|
5,8%
|
7,2%
|
6,9%
|
8%
|
9,3%
|
12%
|
14,3%
|
Fonte: MS/SVS/Dasis/SIM. Cerqueira (2013).
Elaborado pelo autor.
O
crescimento percentual dos HOs ocorre de forma mais expressiva nos anos de 2007
(8%), 2008 (9,3%), 2009 (12%) e 2010 (14,3%). Nesse período, a redução nas
taxas de homicídios em Pernambuco foi de 4,3% na relação 2007 (taxa de
53,03/100 mil) 2008 (50,88/100 mil), menos 11,6% na relação 2008/2009 (taxa de
44,96/100 mil) e menos 12,3% na relação 2009/2010 (taxa de 39,44/100 mil).
Percentual próximo dos dados de HOs, o que pode, praticamente, zerar o processo
de redução dos crimes de homicídios.
Gráfico 3. Crescimento percentual dos
homicídios ocultos em relação aos homicídios registrados em Pernambuco (2000-2010)
Fonte: SIM. Cálculos percentuais dos HOs do
autor.
O
percentual de homicídios ocultos cresceu em Pernambuco entre 2000 e 2010. O
período de 2007 a 2010– que coincide com o início do PPV – foi o mais
expressivo. Em 2010 a diferença percentual entre HOs e HRs foi de mais de 14%.
Conclusão
O
estudo analisado demonstra que houve variações em torno dos ditos Homicídios
Ocultos no Brasil, sobretudo nos últimos anos da série histórica (2007-2010).
Alguns estados apresentaram diminuição dos HOs o que resultaria numa diferença
impactante nos dados oficiais de homicídios (HRs).
“Segundo registros
oficiais, o número de homicídios no Rio Grande do Norte, no Rio de Janeiro e na
Bahia teria aumentado 3%, 5,6% e 7,8%, respectivamente, as estimativas deste
trabalho indicaram que a variação foi de -19,4%, -20,6% e -6,3%. Ou seja, a
diminuição do número de mortes violentas indeterminadas – e de HOs – que
ocorreu em 2010 terminou por esconder uma queda notável no número de homicídios
que houve nestes estados, nesse último ano” (CERQUEIRA, 2013: 38).
Já
em outros estados, como em Pernambuco, ocorreu o inverso. O crescimento dos HOs
ligado à qualidade dos dados de mortes “indeterminadas”, “mascarou” os dados na
realidade. Como foi visto no decorrer do texto, o nível de Pernambuco esteve
entre os mais altos da análise. Em 2010, por exemplo, a estimativa de HOs no
referido Estado foi de 14% dos dados de mortes indeterminadas, enquanto neste
mesmo ano a redução nas taxas de homicídios em relação a 2009 foi de 12,3%.
A
presente análise nos faz refletir sobre a realidade da violência no Estado de
Pernambuco. A qualidade da informação vem se deteriorando o que reflete no
crescimento de mortes “indeterminadas” e, por sua vez, na transparência dos
dados oficiais. O Sistema de Informação de Mortalidade (SIM) para Pernambuco
vem apresentando maior número de mortes sem informação detalhada. O accountability diminui quando os dados
pioram e as estatísticas terminam por não trazer a realidade fazendo com que a
gestão pública seja questionada, ou seja, que o PPV seja questionado na sua
capacidade de reduzir homicídios.
Referência bibliográfica:
CERQUEIRA,
Daniel (2013). Mapa dos Homicídios
Ocultos no Brasil. Texto para Discussão 1848. IPEA. Rio de Janeiro.
[1] Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada.
[2] Instituto de Medicina Legal.
[3] As informações socioeconômicas são
preenchidas na Tabela 6 do original em um modelo de regressão logística.
Segundo este modelo, quando a informação é “ignorada” pelo sistema esta está
associada a alguma característica que possui alto conteúdo informacional, já
que está sempre associada a um forte e positivo efeito sobre a probabilidade de
a vítima ter sofrido homicídio. Por exemplo, quando o sexo da vítima é
ignorado, isto contribui para aumentar 19,5 pontos percentuais (p.p.) a
probabilidade de a vítima ter sofrido homicídio, em relação de a vítima ser do
sexo feminino. Quando o indivíduo é de cor preta ou parda nas mortes ditas
indeterminadas, há uma probabilidade de 7,5 p.p. de ter sido vítima de
homicídio em relação ao de cor branca (CERQUEIRA, 2013: 30).
[4] Justo no início do Pacto Pela
Vida, plano de segurança pública do Governo de Pernambuco que tem a meta de
reduzir os homicídios em 12% ao ano.
[5] No trabalho original, Cerqueira
(2013) traz os dados de 1996 a 2010, aqui vou me deter nos dados de 2000 a
2010.
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