Contando as mortes: estatísticas policiais versus estatísticas da saúde

16-02-2016
Tulio Kahn, cientista político e colaborador do Espaço Democrático



Existe uma desconfiança generalizada com relação às estatísticas publicadas pelos órgãos de segurança. No imaginário popular e jornalístico, as polícias são “parte interessada” em que os resultados sejam positivos, o que retiraria qualquer pretensão de neutralidade na apuração dos dados.

O fato é que existem diversos controles e incentivos para garantir que as estatísticas policiais sejam razoavelmente fidedignas: automatização, mecanismos de checagem internos e externos, padrões históricos, monitoramento pelos familiares das vítimas e pela comunidade, controle pelo Ministério Público – sem falar no fato de que as informações precisam ser corretas para que o planejamento seja eficiente. Não é tarefa fácil manipular estatísticas criminais, pois crimes são fenômenos sociais muito regulares numa série de características (onde ocorre, quando ocorre, perfil das vítimas, instrumentos, etc.), o que facilita a identificação de desvios gritantes.

Apesar das acusações de que os números de homicídios divulgados pelas polícias seriam manipulados – em contraste com os números provenientes da área de saúde (SIM, Datasus), que seriam supostamente isentos – existe uma correlação elevada entre as estatísticas produzidas pelas duas fontes, que são bastante congruentes em termos de tendência, sazonalidade e magnitude, entre outras características típicas das séries temporais.

Como observou o sociólogo Max Webber certa vez, não existe uma metodologia melhor do que outra a priori. Só podemos avaliar se uma metodologia é boa ou ruim na medida em que ela atende ou não aos propósitos para os quais foi criada.

Segurança Pública e Saúde têm simplesmente metodologias diferentes para contar mortes, mas isto não quer dizer que uma seja melhor do que a outra. Cada metodologia reflete apenas as condições de produção e as preocupações de cada setor: o sistema de justiça criminal quer saber se existiu um crime, como ele pode ser classificado juridicamente, se ele foi intencional, qual a motivação, como foi praticado e outras informações que permitam a identificação e punição do autor. A Saúde que saber a causa biológica da morte, os meios utilizados, o perfil da vítima, o contexto em que ocorreu e outras informações de cunho epidemiológico que sirvam para criar políticas preventivas e para alocar recursos hospitalares condizentes com a prevalência do problema no local. Não está interessada no aspecto jurídico do ato nem na identificação dos autores.

Cada sistema estatístico refletirá, portanto, as preocupações pertinentes ao seu universo e nenhum deles é, necessariamente superior. A vantagem dos números do setor sanitário é que ele atua numa etapa posterior, de modo que termina por computar os incidentes que foram classificados pelas polícias como lesões graves e que posteriormente se converteram em mortes. Além disso, diferentemente do sistema de justiça criminal, que é dominado pelo pensamento jurídico não empírico, o setor de saúde tradicionalmente trabalha com informações estatísticas e epidemiológicas e desenvolveu há décadas um eficiente sistema de classificação internacional de doenças padronizado, consolidado na CID-10.

Por outro lado, no sistema de justiça criminal os códigos penais e as demais leis acabam também por fornecer um sistema de classificação relativamente padronizado, pelo menos nos países onde a legislação penal e criminal é matéria federal. Uma classificação que tende a ser precisa e rigorosa, pois tem consequências jurídicas importantes para a incriminação do autor, diferentemente da classificação médica, onde a categorização errônea da causa da morte tem poucas implicações práticas, na medida em que serve apenas como registro de natureza administrativa.

A literatura que analisou a questão da qualidade dos registros produzidos pela Saúde identificou uma série de problemas, neste que supostamente seria uma fonte de registro de melhor qualidade: por exemplo, cobertura geográfica não universal do SIM, percentual elevado de óbitos classificados como “causas de mortalidade desconhecida ou mal definida” ou “eventos cuja intenção é indeterminada”.

No primeiro caso não se sabe se a morte foi natural ou violenta e no segundo, sabe-se que são mortes não naturais, mas a disponibilidade de informações não permite uma diferenciação, pela autoridade médica ou legal, entre suicídios, homicídios ou acidentes.

Pesquisas que analisaram o perfil das vítimas e o meio utilizado sugerem que boa parte dos “eventos cuja intenção é indeterminada” poderia ser classificados como “agressões”, pois porcentagem considerável de casos atinge jovens do sexo masculino vitimados por armas de fogo. (Cano, 2015)

Além disso, existem diversas outras classificações que podem conter homicídios intencionais “camuflados”: abortos não são classificados como agressões, mas numa categoria a parte e não existe menção a eutanásia na CID-10. Acidentes de trânsito com vítimas fatais (como no caso dos rachas de automóveis ou atropelamentos propositais) podem ser dolosos, mas tendem a ser classificados como acidentes pela área de saúde, ficando fora das estatísticas de agressões. Crimes como o arremesso de projétil com resultado morte, descarte de material genético com resultado morte ou tortura resultando morte, que seriam talvez classificados como homicídios pelo sistema de justiça criminal, podem eventualmente ser classificados, respectivamente, como “outras causas externas de traumatismos acidentais”, “exposição acidental a outros fatores e aos não especificados” ou “sequelas de causas externas de morbidade e de mortalidade”.

Como não estão preocupados com a natureza jurídica do ato, mas com sua causa médica, alguns atos que seriam classificados como homicídios pela Justiça podem não ser contabilizados como “agressões” pelo SIM/Datasus. A magnitude destes casos é quase irrelevante, mas o ponto é o seguinte: as mortes podem também estar diluídas em diversas categorias da CID-10, assim como ocorrem com as mortes na esfera da segurança pública, de modo que é preciso somar (ou subtrair) algumas categorias para obter um número mais “correto”, por assim dizer, de mortes intencionais.

Uma estimativa mais precisa dos homicídios usando o SIM/Datasus, por exemplo, implicaria em somar as agressões + intervenções legais + abortos não especificado + % de causas de mortalidade desconhecida ou mal definida + % de acidentes + % eventos cuja intenção é indeterminada, etc.
Raramente alguém se dá ao trabalho de fazer este cômputo, que tem algumas incógnitas e estimativas, pois assume-se que as “agressões” refletem razoavelmente bem o fenômeno das mortes violentas no país. Mas é preciso ter em mente que a categoria “agressões” do Datasus tampouco representa o número exato de mortes violentas, que talvez jamais possa ser obtido, pois não estamos diante de ciências exatas.

Assim como nas categorizações da saúde, o que classificamos como homicídios na esfera da segurança pública é em parte convencional, ou seja, definido historicamente pela sociedade conforme os gostos e entendimento da época. Na maioria dos compêndios estatísticos internacionais, a definição de homicídio ressalta que o ato de matar alguém deve ser infligido por um terceiro, deve ser intencional e ilegal, o que serve como um primeiro filtro, mas não dirime todas as dúvidas na prática.

Alguns sistemas estatísticos incluem o aborto e outros não, alguns incluem o infanticídio e outros não, alguns incluem as mortes em confronto com a polícia e outros não, alguns adicionam o induzimento ao suicídio e outros não. Os manuais procuram deixar claro, através de exemplos concretos, o que se deve incluir ou excluir no cálculo do número de homicídios. Novamente, não existe definição certa ou errada. Trata-se apenas de deixar claro qual foi o conceito e a metodologia utilizada.

Uma estimativa mais precisa do total de homicídios seria também aqui o resultado de uma soma de diferentes categorias: por exemplo, aborto provocado por terceiro + civis mortos em confronto com a polícia + policiais mortos em confronto + feminicídio + homicídio simples + homicídio qualificado + % de mortes suspeita / morte a esclarecer + genocídio, etc. Esta é uma entre outras possíveis definições operacionais de “homicídio”. Não é a única possível nem talvez a melhor.

E quanto à comparação entre as fontes, especificamente segurança pública e saúde? É possível aproximá-las se fizermos uma tentativa de equiparação das categorias utilizadas em cada uma. Trata-se antes de um exercício teórico pois algumas vezes as categorias simplesmente não são equiparáveis. Será sempre um ajuste “grosso” de modo a torna-las mais parecidas, mas nunca iguais pois nunca o serão. E nem precisam ser. O que importa é que sejam congruentes: a magnitude do fenômeno deve ser aproximadamente a mesma, de modo que os locais apontados como mais violentos por uma devem grosso modo coincidir com os locais indicados pela outra. Se uma fonte sugere que os homicídios estão caindo no Sudeste e aumentando no Nordeste, a outra deve de algum modo mostrar o mesmo processo.

Esta equiparação de categorias entre as duas fontes pode servir para identificar desvios – de um ou de outro lado – pois como sugerido os números devem ser congruentes, apesar das diferenças. Os desvios são interessantes pois eles podem indicar erros de coleta ou tentativas de fraude. Um sistema que contenha informações desagregadas de ambas as fontes pode tentar fazer uma aproximação entre elas. O sucesso do esforço de compatibilização pode ser mensurado através do coeficiente de correlação entre as duas séries, tomadas tanto no tempo quanto no espaço. Ele medirá se a quantidade de casos num determinado período ou local é similar. Nada impede que ambas as fontes estejam erradas, mas pelo menos temos duas formas de medir o mesmo fenômeno, o que contribui para a validação das informações.

Qualquer que seja a fonte utilizada, ela indicará que a magnitude de homicídios/agressões intencionais no Brasil é intolerável. A mensuração correta é importante, mas o cerne do problema hoje não é de mensuração, mas o de colocar em prática políticas públicas efetivas para prevenir os homicídios. O problema não está no termômetro, mas no fato de que o País está ardendo em febre!

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